A concepção da vida não é algo subjetivo. Pelo contrário, a objetividade pela qual o ser humano é gerado é verdade absoluta, irrevogável, irretratável, devendo ser defendida pela própria humanidade, em seus diversos sistemas políticos e jurisdicionais, de modo a garantir que ao nascituro haja direito inalienável à existência, e isso tem início na fecundação. Pensar na garantia dos direitos fundamentais do ser humano é, via de regra, salvaguardar a vida em sua totalidade. Sem tal conceito, o vácuo jurídico, político e social parece indecifrável e com vício de terminologia legal.
A postura da proteção à vida desde a concepção não é mero achado teológico ou oriundo de pensamento eclesiástico medieval, mas encontra guarida no pensamento, por exemplo, do eminente filósofo Christopher Kaczor, que aborda seu posicionamento na importante obra The Ethics of Abortion (A Ética do Aborto).
Um pertinente questionamento no respeitante à pauta do aborto é a “determinação” de quando, de fato, começa a vida. Para tanto, o filósofo Mathew Lu, professor assistente de Filosofia na Universidade de St. Thomas, em St. Paul, Minnesota, sugere caminhos, em tratados filosóficos, que garantem que nossa existência tem início na fecundação. Isso dito, promove-se a ciência, como garantia de total objetividade e autoridade final nos assuntos acadêmicos, com os quais os campos políticos da esquerda e da direita concordam. Ao menos, é o aspecto que se percebe muito mais neste momento pandêmico por qual passa a humanidade.
Citado por Mathew Lu, em seus estudos sobre a concepção da vida e o aborto, o embriologista, acadêmico e cientista Maureen Condic, alega que a grande maioria das evidências sugere que as condições necessárias e basilares para a existência da vida são cumpridas na concepção. Mas o passo maior a ser dado também perpassa a metafísica. Para o estudioso William Carroll, a mudança de não vivo para vivo não pode ser uma transição observável, já que a mudança ocorre de uma vez, instantaneamente.
Pelo mesmo cálculo, é plenamente observável que a biologia contemporânea contempla na concepção um novo ser vivo, exercendo, portanto, poderes que nos certificam da máxima aqui estabelecida. Além disso, um zigoto se desenvolve regularmente para se tornar um adulto maduro e, neste caso, temos a certeza de que é um ser humano, um organismo especificamente humano.
Pensamento semelhante encontramos no filósofo Chrtistopher Tollefsen, autor, juntamente com Robert P. George, da obra Embryo: A defenseofhuman Life (Embrião: Uma defesa da Vida Humana). Segundo os autores: “Os embriões humanos são seres humanos em um certo estágio (muito prematuro) de desenvolvimento e que, na grande maioria dos casos, esses seres humanos começam a existir na concepção, após a fertilização de um óvulo por um espermatozoide”.
Não obstante, para que tenhamos maior pluralidade de ideias, permitamos que a metafísica e sua estreiteza com o método teológico possibilite novos caminhos de percepção para um entendimento macro sobre vida e morte, esta por meio do aborto. Forte motivo para isso é visto nos estudos de Aristóteles.
Segundo o erudito pensador grego, a ordem de conhecimento nos permite ver que cada uma das ciências menores tira seus princípios das ciências maiores. Lancemos mão do exemplo da engenharia, que busca na física seus princípios elementares, mas, nem por isso, um engenheiro responde a questões pontuais sobre física. Nada, no entanto, impede que um engenheiro se torne um físico, mas sua ciência não será mais, deste modo, e se assim for, a engenharia, mas a física.
Percebamos que, no mesmo entendimento, um profissional específico, tal como um biólogo, também pode participar de uma reflexão filosófica sobre a filosofia da biologia e da vida. Os ofícios se misturam sem que, no entanto, tornem-se imediatamente singulares. Nesta perspectiva, abrimos espaço para que a teologia pública possa responder a questões cruciais na modernidade, como o aborto.
O professor e teólogo Lourenço Stelio Rega, representante da convenção Batista Brasileira, defende que a concepção é o marcador do início da vida como uma pessoa. Similaridade teológica é notada nos símbolos de fé da igreja cristã, tais como a Didaché, o Catecismo da Igreja Católica e o Código de Direito Canônico. Apresentando ideias semelhantes aos documentos supracitados, Agostinho de Hipona, articulando seu pensamento ao de Immanuel Kant, estabelece que existe uma inversão na ordem de criação, em que as criaturas e coisas inferiores são preferidas às superiores, situação em que se enquadraria o aborto, no qual a vida humana é eliminada em função de outros elementos de menor importância.
Santo Agostinho, em De natura boni, De libero arbítrio, e no De civitate Dei, São Tomás de Aquino, em O ente e a essência, e Kant, em Fundamentação da metafísica dos costumes, embora não tratem especificamente do aborto tal e qual, possuem, pela exegese de seus escritos, a noção de hierarquia dos seres, de modo a valorizar a vida, já mapeada na Bíblia, do ser humano, criado por Deus. A ideia da hierarquia se torna dominante na teologia e na filosofia cristãs, sendo desenvolvida amplamente através dos séculos. Existe, nisso, influência neoplatônica, de cujo arcabouço teórico os cristãos se apropriam.
A defesa da vida, nesta esfera pública da teologia, é curricular ao pensamento humano, irrevogável e inalienável
A defesa da vida, neste ínterim, está referenciada nas Escrituras, como “Não matarás” (Êxodo 20:13). No livro bíblico do Deuteronômio, 18:10, vemos a prescrição da proibição de quaisquer práticas de sacrifício de crianças (modelo de culto de culturas antigas, do Oriente Médio, ao deus moloc – totalmente anacrônico aos dias atuais, réprobo, abjeto, mas que é citado, neste artigo, por ocasião de exemplificação do valor da vida em detrimento da morte).
Ademais, a teologia, na exegese e hermenêutica do texto do Salmo davídico, 139, diz: “Sim! Pois tu me formaste os meus rins, tu me teceste no seio materno. (...) meus ossos não te foram escondidos quando eu era modelado”. Maior exemplo bíblico não há de demonstração do valor da vida intrauterina.
Destarte, o Catecismo da Igreja Católica e o Código de Direito Canônico reverberam a visão bíblica de que a vida humana tem início na concepção, sendo, portanto, o aborto comparado com a prática do homicídio de um inocente. No Catecismo, por exemplo, temos a defesa de que “o inalienável direito à vida de todo indivíduo humano inocente é um elemento constitutivo da vida civil e de sua legislação” (CIC 2271).
Seguimos em direção ao posicionamento que este colunista segue em relação ao aborto. A legislação brasileira permite o aborto, nos casos previstos nos excertos legais, na forma da lei. Mas, faz-se necessário elucidar o fato de que toda vida tem o pertencimento de si própria. É inalienável o direito à existência e esta deve ser preservada no estatuto da ética social. É notório que excessos se dão em casos omissos, mas não se pode legislar pela exceção, e sim por regra.
Sigamos em defesa da vida, pois esta é a primeira garantia que temos, sendo que a segunda é a morte, mas esta é, como diria o célebre poeta Manuel Bandeira “A indesejada das gentes”.
Valho-me, para dar acabamento ao presente artigo, sabendo que a pauta é extensa e imperativa, sendo inacabada sempre, do pensamento de Rabindranath Tagore: “Cada criança que nasce é uma prova de que Deus ainda não perdeu as esperanças em relação à humanidade”.
Edgar Talevi de Oliveira é professor.
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