A memória do Holocausto, assim como a de qualquer evento histórico, é um processo constante de construção e desconstrução. Após décadas de uma visão particular e mais restrita dos legados deste genocídio cometido pelos nazistas e por seus colaboradores, vivemos hoje um momento de universalização dessa memória a partir da ampla noção de direitos humanos. Significa que as lições que nós, humanidade, criamos a partir do Holocausto precisam nos ser úteis. Em outras palavras, que o sentimento de pertença extrapole os judeus e alcance a todos.
Dentre percalços que circulam entre o negacionismo e o antissemitismo, o 27 de janeiro nos ajuda a construir a memória do Holocausto e garantir que ela seja perpetuada às próximas gerações. Implementada como “Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto” por meio da Resolução 60/7 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em novembro de 2005, a data remete à liberação do complexo de extermínio nazista de Auschwitz-Birkenau. No Brasil, mesmo rememorada oficial e ininterruptamente desde o ano seguinte, eventos recentes têm alavancado a visibilidade e o simbolismo dessa data, reforçando sua relevância para a nação brasileira. Citamos três deles, ocorridos em 2017, 2021 e 2023, respectivamente.
Em dezembro de 2017, o Conselho Nacional de Educação (CNE) inseriu na nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Fundamental, como temas obrigatórios, “Judeus e outras vítimas do Holocausto” e o estudo “do extermínio de judeus (como o Holocausto)”. Ambos foram introduzidos na matriz curricular do 9º ano, nas páginas 428 e 429 da BNCC. Assim, o ensino do Holocausto tornou-se compulsório em território nacional, sobrepondo-se a leis municipais e iniciativas públicas pontuais anteriores. A proposta partiu da Confederação Israelita do Brasil (CONIB), com o apoio do Museu do Holocausto de Curitiba. A inserção cumpre ainda a mesma Resolução da ONU, que recomenda “desenvolver programas educacionais que levem a futuras gerações lições do Holocausto a fim de prevenir genocídios futuros”.
Falar sobre o Holocausto precisa estar ligado às narrativas sobre o racismo, sobre a violência contra a mulher, a LGBTQIAP+fobia, a intolerância religiosa, a xenofobia, o capacitismo, o acolhimento a refugiados e, obviamente, sobre o antissemitismo
Em 2021, o Brasil foi aceito, por unanimidade, como membro-observador da Aliança Internacional para a Recordação do Holocausto – IHRA. A inclusão do Brasil nesse seleto grupo significa que o país sela definitivamente um compromisso em promover a educação sobre o Holocausto e combater o antissemitismo, não importe governos ou ideologias. É como uma convenção, um acordo em larga escala. Na prática, o Brasil se compromete a avançar em propostas pedagógicas, de pesquisa e de memória do Holocausto, reforçando os pactos firmados na Declaração de Estocolmo de 2000.
Já em 2023, o dia 7 de outubro ficou marcado por um dos mais abomináveis atos terroristas já cometidos na história. Até então, falar sobre antissemitismo para o público brasileiro era sempre um desafio – porque parecia um ódio abstrato, talvez adormecido ou invisibilizado. Porém, o que o cofundador e diretor do Instituto Brasil-Israel (IBI), David Diesendruck, chamou de “negacionismo progressista” se transformou na mola propulsora de uma apologia à barbárie disfarçada de antissionismo. Apesar de um fenômeno historicamente complexo e de uma compreensão sociológica bastante hermética, o antissemitismo não é algo oculto ou que reside no submundo da sociedade. Ele existe, é real e pode ser facilmente detectado – como tem sido nos últimos meses, em todo o mundo.
Esses três eventos dão suporte moral e fortalecem a importância de marcarmos o 27 de janeiro não apenas transmitindo cruamente as atrocidades cometidas no contexto da Segunda Guerra Mundial. O Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto é uma oportunidade para destacarmos como o racismo e o antissemitismo caminham juntos, com os mesmos pressupostos e as mesmas bases. Estão inclusive em todos os espectros políticos. Transmitimos e lidamos com o Holocausto como uma ferramenta educativa poderosa para trabalhar temas atuais e relevantes, sendo um deles o racismo – que, como já destacou o ministro Silvio Almeida, não é só um ato, e sim um processo. Combatê-los é uma necessidade diária e inerente a todos nós, e uma das formas, além de ações jurídicas e pedagógicas, é criar pontes e canais de diálogo com a sociedade brasileira.
A importância de relembrar está na conexão que fazemos do passado com o presente e o futuro. Por isso, falar sobre o Holocausto precisa estar ligado às narrativas sobre o racismo, sobre a violência contra a mulher, a LGBTQIAP+fobia, a intolerância religiosa, a xenofobia, o capacitismo, o acolhimento a refugiados e, obviamente, sobre o antissemitismo. Sem nenhum tipo de silenciamento ou hipocrisia.
Universalizar essa memória significa decodificar a tragédia e retirar dela valores que podem ser compartilhados: tolerância, democracia, liberdade, pluralidade, alteridade, direitos humanos, equidade, diversidade, justiça, resistência, resiliência e o valor da vida. Quando falamos “Holocausto nunca mais”, estamos renovando um pacto coletivo e nos comprometendo a, sim, manusear a memória da tragédia e utilizá-la como agente transformador, sem vulgarizá-la. E o 27 de janeiro nos ajuda a fazer isso.
Carlos Reiss é o coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba, além de membro do comitê executivo da Rede Latino-Americana para o Ensino da Shoá (LAES), da delegação brasileira da International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA) e da equipe curatorial do Memorial às Vítimas do Holocausto do Rio de Janeiro. Claudio Lottenberg é oftalmologista, presidente da Confederação Israelita do Brasil (CONIB) e presidente do Conselho do Hospital Israelita Albert Einstein.
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