A sociedade brasileira tem vivido, nos últimos cinco anos, o período mais sombrio e tenebroso de sua história desde o início da redemocratização, no final da década de 1980. Se formos buscar, em outras partes do mundo, uma situação análoga à que vivemos hoje, talvez só consigamos encontrar algum paralelo em regimes políticos ditatoriais, como China, Rússia, Coreia do Norte, Irã, entre outros.
Há uma infinidade de situações que retratam os abusos e as distorções de que vêm sendo vítimas os cidadãos brasileiros, mas, sem dúvida, a maior expressão desse momento trevoso que hoje enfrentamos encontra-se em nosso ordenamento jurídico, especialmente no que toca ao Estado de Direito e aos direitos e liberdades fundamentais do indivíduo. A insegurança jurídica se faz sentir de modo definitivo com a proliferação de decisões monocráticas emanadas de um único ministro do Supremo Tribunal Federal com flagrantes inconstitucionalidades e ilegalidades.
Tais decisões vêm colidir frontalmente com os valores essenciais da dignidade e dos direitos fundamentais da pessoa humana, expressos na Constituição Federal e consagrados em diversos tratados e documentos internacionais. Isso nos leva à inarredável conclusão de que tais decisões, pela gravidade de que se revestem, podem e devem, incontinenti, ser revistas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ou CIDH, com o consequente reconhecimento da obrigatoriedade e da exequibilidade de suas sentenças no ordenamento jurídico brasileiro.
Vale lembrar que o Estado Brasileiro já foi julgado e condenado por aquele tribunal em 13 ocasiões (a propósito, veja-se https://www.corteidh.or.cr), e essas condenações decorreram de diversas ações levadas a efeito por agentes e órgãos do Estado que caracterizaram autêntico vilipêndio aos direitos humanos.
As sentenças proferidas pelos juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) têm natureza de títulos executivos judiciais
Tomando-se por base as decisões monocráticas antes mencionadas, proferidas por ministros da Suprema Corte brasileira, que encerram flagrante abuso de autoridade por atentarem contra o Estado de Direito e os direitos e liberdades fundamentais, é de se perguntar se há qualquer justificativa plausível, do ponto de vista legal e mesmo constitucional, para que tais decisões não se submetam à apreciação por parte da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Alguns ministros do Supremo Tribunal Federal ainda relutam em reconhecer a força obrigatória das decisões da CIDH e seu efetivo cumprimento pelos órgãos do Estado brasileiro, fundamentando seu entendimento na prevalência da soberania do Estado e da Constituição Federal. Vale ressaltar, desde logo, que o Estado brasileiro, no momento em que ratifica um tratado, promovendo sua incorporação em seu ordenamento jurídico, passa a assumir direitos e obrigações perante seus pares na esfera internacional, vinculando-se juridicamente às normas desse tratado. Aqui, não há que se falar em soberania como imposição de vontade de um Estado sobre outro, mas sim como convivência e coexistência de soberanias, no plano da igualdade dos Estados.
Ademais, o crescente processo de universalização dos direitos humanos foi amplamente reconhecido pela Constituição Federal do Brasil, a qual, em seu art. 5º, § 3º, estabelece: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
A CIDH foi instituída pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), um tratado internacional que versa sobre direitos fundamentais de cada pessoa no território das Américas. É por essa razão que o desrespeito aos direitos humanos consagrados no aludido tratado deve ser considerado uma ofensa ao dispositivo constitucional citado e, como consequência, o ato lesivo submete-se a julgamento por um tribunal internacional.
As sentenças proferidas pelos juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) têm natureza de títulos executivos judiciais, porque emanadas de um órgão judiciário internacional cuja função é analisar, julgar e condenar situações claras de violações de direitos humanos cometidas em países sujeitos à sua jurisdição. Nesse sentido, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) estabelece: “Art. 67. A sentença da Corte será definitiva e inapelável (...)” e “Art. 68.1. Os Estados-Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes.”
Portanto, havendo condenação de nosso país pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, essa sentença dirige-se ao Estado como um todo, abrangendo os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Hoje, as violações dos direitos humanos se fazem sentir de modo mais eloquente nas decisões monocráticas de ministros do Supremo Tribunal Federal e, embora haja um número considerável de representações protocoladas junto à CIDH contra essas decisões, ainda não houve pronunciamento definitivo por parte daquele tribunal.
À guisa de conclusão, remete-se à célebre frase de Rui Barbosa: “A pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer”. É preciso considerar que a frase de Rui Barbosa teve lugar em outro contexto político-jurídico. Hoje, no estágio atual de evolução do Direito Internacional, é de todo possível e até recomendável que toda e qualquer decisão que venha a ser proferida por membro do Poder Judiciário Brasileiro e cujo conteúdo atente contra os direitos fundamentais da pessoa humana, seja objeto de revisão e de modificação por uma Corte internacional, garantindo-se, assim, o pleno exercício dos direitos e liberdades e o restabelecimento do Estado de Direito.
Afonso Grisi Neto é mestre em Direito pela USP, doutor em Ciências Sociais pela PUC e procurador federal.
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