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O mito do “resgate da masculinidade”: veneno disfarçado de cura

(Foto: Simone Pellegrini/Unsplash )

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Vivemos em um tempo paradoxal. Nunca se falou tanto sobre “masculinidade” e nunca os homens estiveram tão adoecidos, solitários e angustiados. As estatísticas não mentem: homens têm taxas mais altas de suicídio, de alcoolismo, de mortes violentas; são menos propensos a buscar ajuda terapêutica; têm mais dificuldade em expressar sentimentos profundos; e, por trás de tudo isso, há um silêncio que grita por dentro: “Quem eu sou, afinal?”. A pergunta que ecoa no inconsciente masculino não é “como ser mais viril?”, mas: “Existe um lugar no mundo onde eu posso ser inteiro e não ser ridicularizado por isso?”

Nos últimos anos, o vácuo de identidade vivenciado por muitos homens foi rapidamente preenchido por discursos que prometem “resgatar a masculinidade perdida”. Esses discursos surgem como um “messianismo” viril. Muitos coaches e influencers propagam frases como: “O homem moderno está fraco”; “Você precisa se tornar um macho alfa”; “Homem que sente demais é emasculado”; “Volte a ser o provedor, o líder, o dominador”; “Homem de verdade impõe respeito”; “Assuma o controle”; “Homem que chora é fraco”.

A tradição cristã oferece modelos de masculinidade profundamente humanos, que não precisaram dominar ninguém para serem grandes. Sua força veio do mergulho profundo em suas fragilidades e da entrega amorosa a um Mistério maior que eles

Esses discursos reduzem a masculinidade a estereótipos performáticos: força bruta, liderança sem afeto, dureza emocional; silenciam o sofrimento real de homens sensíveis, introspectivos, espiritualmente profundos; criam uma falsa saída para a dor masculina; alimentam culturas de culto ao ego, ao poder, ao desprezo pelo afeto, muitas vezes associadas à misoginia, homofobia e intolerância.

Essa masculinidade idealizada é, na realidade, uma máscara frágil, construída sobre a negação do sofrimento, da dúvida, da empatia e da ternura. Esses movimentos adoecem porque invalidam a dor psíquica e espiritual, acusando quem sofre de estar “feminilizado” ou “fraco”; transformam a masculinidade em um produto, vendido por coaches, gurus e influencers como uma série de performances estéticas, posturas e comportamentos estereotipados; reforçam rivalidades e hierarquias tóxicas entre homens, onde “vencer” é mais importante que se integrar, se curar ou se humanizar; geram culpa e vergonha em homens que vivem crises legítimas, que sofrem com ansiedade, depressão, insegurança ou trauma, porque não “atingem o padrão”.

Esse discurso, em vez de libertar, na realidade oprime e desumaniza o homem. Isso adoece porque o verdadeiro sofrimento do homem contemporâneo não é falta de virilidade, e sim falta de vida interior, de escuta verdadeira entre homens sem julgamento, desconexão com as dimensões espirituais, simbólicas e afetivas da vida, falta de permissão para ser vulnerável sem ser humilhado por isso. O resultado são homens mais isolados, mais deprimidos e mais violentos, consigo mesmos e com os outros.

Mas há outro caminho. Esse caminho não se encontra nos palcos dos coaches virais, mas no interior do coração, onde homens possam se permitir chorar, perder, amar, se quebrar e se reconstruir. Essa masculinidade não é uma performance, mas uma integração. Ela nasce do encontro com o próprio inconsciente, com as feridas da infância, com a sombra rejeitada, com a espiritualidade.

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O homem que busca uma masculinidade verdadeira e curada precisa de três coisas essenciais: terapia autêntica, onde possa ser ouvido sem julgamento, as máscaras possam cair e a dor possa ser nomeada; espiritualidade não moralista e encarnada, onde a oração não seja um dever, mas um espaço de silêncio e desabafo com Deus; encontro com outros homens que também busquem esse caminho, não para competir, mas para compartilhar o caminho.

A cura masculina começa quando o homem pode dizer: “Eu estou sofrendo. Eu não preciso ser perfeito, nem imbatível. Eu só preciso ser verdadeiro". A tradição cristã oferece modelos de masculinidade profundamente humanos, que não precisaram dominar ninguém para serem grandes. Sua força veio do mergulho profundo em suas fragilidades e da entrega amorosa a um Mistério maior que eles.

Em primeiro lugar e acima de todos, Jesus Cristo (que chora pela morte de Lázaro, perdoa os inimigos, lava os pés dos amigos, carrega sua cruz em silêncio, morre entre criminosos e é um rei coroado de espinhos em um trono de cruz); depois, São José (trabalhador, justo, silencioso, profundamente protetor e obediente ao Mistério); São João (discípulo amado que reclina a cabeça no peito de Jesus); Santo Agostinho (que confessa seus pecados, chora sobre suas contradições e escreve diante de Deus); São Francisco de Assis (que renuncia à guerra, chora por compaixão das criaturas, anda com os pobres, abraça os leprosos e fala com os animais).

Dimitri Martins é mestre em Administração e especialista em Gestão Pública.

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