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O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio de Mello costumava dizer, em seus pronunciamentos no Plenário da Corte Suprema, que “vivemos tempos muito estranhos”. Aposentado desde julho de 2021, hoje certamente faria uso ainda mais frequente dessa expressão.
Jornalista é condenada a pagar R$ 600 mil de indenização a desembargadora por divulgação de vultoso benefício recebido pela magistrada, sob o argumento de que seria obrigatório ao jornalista expor a origem dos recursos, explicando que o pagamento dizia respeito ao reconhecimento de direitos anteriormente não respeitados – como se o valor, que corresponde a mais de doze vezes o teto da remuneração do servidor público, não fosse, em si, desproporcional. Os dados relativos à remuneração de agentes públicos são de interesse coletivo e sujeitos à transparência, conforme estabelece a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011). Logo, quando a crítica se refere ao uso de recursos públicos, a exigência de sigilo ou moderação deve ser excepcional, e não regra.
Nestes tempos – muito estranhos – a liberdade de expressão está sendo privatizada: apenas quem julga, valendo-se de sua força institucional ou cultural, é que pode dizer o que pensa
Políticos têm seus mandatos cassados; parlamentares são condenados simplesmente por falarem o que pensam em pleno debate político. Embora o combate ao discurso de ódio e à incitação à violência seja legítimo, o art. 53 da Constituição Federal assegura aos membros do Congresso Nacional imunidade por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato. O equilíbrio entre essa imunidade e o dever de preservar o regime democrático e os direitos fundamentais da pessoa humana é um dos grandes desafios institucionais do nosso tempo, exigindo do Judiciário, incluindo o STF, a cautela de não inviabilizar o pluralismo de ideias sob o pretexto de combater abusos. Chama a atenção o fato de que parcelas relevantes da sociedade brasileira, ora de um lado do espectro ideológico, ora do outro, têm percebido essas punições sob um viés específico, o que em nada contribui para o fortalecimento democrático.
Para exemplificarmos este ponto, em recente decisão da Justiça Eleitoral de São Caetano do Sul, um vereador foi condenado criminalmente por dizer a uma vereadora que ela era a Maria do Rosário da cidade, no contexto de um debate político sobre Israel e Palestina. Nada se falou sobre Jair Bolsonaro. Mas a condenação ocorreu por presunção de que a referência era ao triste episódio entre a parlamentar federal e o ex-presidente. Não era essa a ideia no contexto do debate, mas sim a discussão direita-esquerda.
Agora, humorista é condenado a oito anos de prisão por fazer... piada! E o fundamento é a mudança de entendimento sobre qual seria o humor admitido pela sociedade, segundo a interpretação de um juiz que entende não serem mais admitidas piadas “politicamente incorretas”, por afrontarem aos direitos humanos.
Não se nega que o discurso politicamente correto é fruto da luta por reconhecimento de grupos historicamente marginalizados e que manifestações discriminatórias não podem ser admitidas. Porém, o que os exemplos aqui expostos demonstram é que, não poucas vezes, o espaço público democrático de debate de ideias e de manifestação de diferentes opiniões está sendo erodido.
Juiz não é intocável, mesmo os do STF. Pelo contrário, é um servidor público, que deve prestar contas à sociedade e, como agente do Estado, encontra-se ainda mais suscetível à fiscalização e às críticas públicas. O politicamente correto não é lei. É a expressão de uma ideologia que se transformou em uma “mentira moral” que inibe o pensamento crítico e a liberdade de expressão, segundo o filósofo Luiz Felipe Pondé (2012). Ainda segundo Pondé, quem favorece o politicamente correto é “a cultura dominante”.
Nestes tempos – muito estranhos – a liberdade de expressão está sendo privatizada: apenas quem julga, valendo-se de sua força institucional ou cultural, é que pode dizer o que pensa. Em outros tempos, o STF, ao julgar a ADI 4451, reconheceu a liberdade do humor. Em seu voto vencedor, o relator, ministro do STF Alexandre de Moraes, afirmou: O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional.
Quiçá o bom senso de outrora volte a prevalecer em nosso país. Se assim não caminharmos, caberá, sob outras condições, lembrar do poeta: Pai, afasta de mim esse cálice; Pai, afasta de mim esse cálice. A liberdade de expressão, embora sujeita a limites constitucionais, não pode ser restringida com base em critérios morais voláteis ou em sensibilidades individuais. Que nosso vinho continue branco, mas não de lágrimas.
Flávio Henrique Costa Pereira é advogado, especialista em Direito Público e Eleitoral, sócio da Barbero Advogados
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



