Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Artigo

O que a prisão injusta de Bolsonaro revela sobre o Estado de Direito no Brasil

Imprensa internacional repercutiu a prisão preventiva do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro, ocorrida neste sábado (22). (Foto: (EPA) EFE/ Andre Borges)

Ouça este conteúdo

A Ação Penal 2668, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, reacende um debate que ultrapassa o caso concreto e alcança os fundamentos estruturais do constitucionalismo brasileiro. O processo envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro acumulou, ao longo de sua tramitação, indícios de vícios formais e materiais que demandam escrutínio rigoroso, tanto sob o ponto de vista dogmático quanto institucional. A recente prisão preventiva decretada em desfavor de Bolsonaro, mesmo após pedido formal da Polícia Federal, reacende dúvidas sobre a coerência do processo e a compatibilidade das medidas adotadas com o modelo constitucional de processo penal.

O processo penal democrático não admite improvisações interpretativas. A Constituição de 1988 e o Código de Processo Penal, sobretudo após a reforma de 2019, consolidaram um sistema acusatório em que o magistrado não pode agir de ofício em matéria penal. O artigo 3º A do CPP é categórico ao determinar a separação das funções de acusar e julgar. No caso em análise sobre Bolsonaro, chama atenção a possibilidade de iniciativas judiciais não provocadas pelo órgão acusador em etapas decisivas da ação penal. Se confirmada, essa prática caracteriza violação ao princípio da inércia da jurisdição e compromete o devido processo legal assegurado no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição.

A defesa da Constituição exige que o exercício da jurisdição se mantenha rigorosamente vinculado aos limites estabelecidos pelo texto constitucional. O Estado de Direito se preserva quando o poder se contém

Outro ponto que merece atenção é a fragilidade probatória que sustenta parte da acusação contra Bolsonaro. A imputação se baseia predominantemente em delações premiadas e registros de conversas privadas, elementos que, por si sós, não configuram atos executórios de tentativa de golpe. A legislação processual é clara ao estabelecer que nenhuma medida restritiva de liberdade pode se fundamentar exclusivamente em declarações de colaboradores. A ausência de prova material autônoma e contemporânea fragiliza a narrativa acusatória e tensiona o princípio da presunção de inocência previsto no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição.

Há, ainda, indícios de violação ao princípio do juiz natural. A competência penal originária do Supremo Tribunal Federal possui limites estritos, aplicáveis apenas a autoridades investidas em funções específicas. A extensão desse foro para alcançar réus sem prerrogativa funcional desvirtua o texto constitucional e suscita dúvidas sobre a validade dos atos processuais. A garantia do juiz natural não é mera formalidade, mas um dos pilares do constitucionalismo liberal destinado a impedir que processos sejam submetidos a órgãos predeterminados por razões políticas.

Outro aspecto que desperta preocupação é a antecipação pública de entendimentos condenatórios contra Bolsonaro antes mesmo da apresentação da defesa final. Em julgamentos colegiados, compete ao relator expor os fatos e oferecer condições para que a defesa se manifeste, preservando a possibilidade de formação genuína do convencimento. Quando manifestações públicas antecipam o resultado, ainda que de forma indireta, há abalo à aparência de imparcialidade, que possui relevância constitucional equivalente à própria imparcialidade subjetiva.

Também merece análise a crescente indistinção entre interpretação constitucional e criação normativa. Decisões que redefinem o alcance de leis futuras, que alteram o sentido de dispositivos constitucionais ou que estabelecem parâmetros não previstos pelo legislador tensionam a separação dos Poderes. O artigo 2º da Constituição consagra a independência e a harmonia entre Executivo, Legislativo e Judiciário, enquanto o artigo 60, parágrafo 4º, inciso III, protege essa separação como cláusula pétrea. A justiça constitucional tem competência para interpretar a Constituição, nunca para substituí-la.

VEJA TAMBÉM:

Após esse conjunto de indícios, é impossível ignorar que parte da doutrina contemporânea passou a utilizar o conceito de lawfare para analisar processos em que o aparato jurídico parece operar com grau de excepcionalidade. Em discussões internacionais, lawfare é a expressão usada para indicar cenários em que instrumentos legais são aplicados de maneira expansiva, gerando efeitos políticos que transcendem a finalidade jurisdicional. Trata-se de um conceito teórico, não direcionado a pessoas, empregado para examinar situações em que a normalidade institucional é tensionada e o processo penal assume contornos estratégicos.

No contexto da Ação Penal 2668, determinados elementos se aproximam desse campo de debate. A concentração de competência em um único órgão julgador, a antecipação de entendimentos condenatórios, o emprego de provas sem robustez material e a adoção de medidas cautelares intensas em ambiente marcado por controvérsias processuais criam um cenário que dialoga com esse marco teórico. Essa aproximação não formula conclusões definitivas, mas evidencia que o processo reúne elementos suficientes para justificar reflexão aprofundada sobre sua proporcionalidade e sobre sua aderência aos parâmetros constitucionais que limitam o exercício do poder punitivo.

A decretação recente da prisão preventiva do ex-presidente Bolsonaro, requerida pela Polícia Federal e acolhida no âmbito da mesma ação penal, intensifica essas preocupações. Embora a provocação formal tenha ocorrido, a fundamentação apresentada parece reproduzir vícios já observados na trajetória do processo, especialmente no que diz respeito à contemporaneidade dos fatos e à demonstração concreta de risco atual. A prisão preventiva, por sua natureza excepcional, exige motivação inequívoca, sob pena de converter-se em punição antecipada.

Do ponto de vista técnico, a motivação apresentada não atende plenamente às exigências legais que condicionam a prisão cautelar à existência de risco real e imediato. A relevância política do investigado e a gravidade abstrata das imputações não substituem a necessidade de demonstração objetiva de perigo. Quando o encarceramento se respalda em presunções amplas e não em fatos verificáveis, perde sua natureza cautelar e passa a refletir apenas um efeito simbólico, incompatível com o sistema acusatório.

Além disso, o impacto político e institucional de decisões dessa natureza exige cautela redobrada. A prisão de um ex-chefe de Estado como Bolsonaro demanda rigor ainda maior na observância das garantias processuais, pois seus efeitos transcendem o caso concreto e influenciam a percepção nacional e internacional sobre a estabilidade das instituições. Se as irregularidades processuais vierem a ser confirmadas, a anulação parcial ou total do processo não apenas seria possível, mas necessária para restaurar a legalidade constitucional.

A defesa da Constituição exige que o exercício da jurisdição se mantenha rigorosamente vinculado aos limites estabelecidos pelo texto constitucional. O Estado de Direito se preserva quando o poder se contém. A coerência do sistema constitucional depende da fidelidade às garantias que limitam a atuação estatal na esfera penal. Enquanto persistirem indícios de que esses limites estão sendo tensionados, haverá razão legítima para resistência jurídica e para a reafirmação de que liberdade, devido processo e legalidade não são concessões do Estado, mas direitos fundamentais da sociedade brasileira.

Gregório Rabelo, advogado e empresário, é especializado em Direito Constitucional e Legislativo. Atua como assessor jurídico-legislativo na Câmara dos Deputados.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.