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O radicalismo que nos habita e os discursos de ódio que nos afetam

Manifestantes homenageiam Charlie Kirk em Londres, em 13 de setembro: guinada no Ocidente?
Manifestantes homenageiam Charlie Kirk em Londres, em 13 de setembro: guinada no Ocidente? (Foto: EFE/EPA/TAYFUN SALCI)

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O assassinato de Charlie Kirk não é apenas mais um episódio de violência política que choca. Ele revela a força corrosiva de discursos de ódio que circulam e encontram legitimidade – seja nas redes sociais, seja em tribunas parlamentares no Brasil e no exterior. É tentador atribuir o problema apenas a líderes manipuladores ou a algoritmos de engajamento. Mais difícil – e mais necessário – é admitir que o radicalismo também se enraíza dentro de nós.

Freud, em Psicologia das massas e análise do Eu (1921), descreveu como, diante da incerteza, o sujeito se sente aliviado ao dissolver-se no grupo. O líder funciona como o “pai primevo” – temido, mas desejado. Essa identificação cria a sensação de força e pertencimento, mas cobra um alto preço: “na massa, o indivíduo sente-se invencível; desaparece o senso de responsabilidade, que o domina sozinho.” É nesse abandono da crítica em troca de segurança que germinam os radicalismos que hoje se apresentam como palavras de ordem.

Converter a fúria em palavra, o ressentimento em pensamento, o medo em reflexão e coragem para discernir. Esse é um trabalho árduo e silencioso – e, ao mesmo tempo, civilizatório – que cada um precisa assumir

Em O mal-estar na civilização (1930), Freud acrescenta outra chave de leitura: viver em sociedade exige renúncia pulsional, sobretudo da agressividade. Essa repressão não nos pacifica; ao contrário, acumula ressentimento. O próximo, que deveria ser parceiro, torna-se depósito do que não suportamos em nós. Freud não poupa palavras: “o próximo não é apenas um colaborador, mas também uma tentação para satisfazer sobre ele a agressividade, humilhá-lo, torturá-lo e matá-lo.”

É perturbador juntar essas duas teses. De um lado, a vontade de dissolver-se na massa e obedecer ao líder; de outro, a necessidade de descarregar a agressividade sobre alguém. É nessa combinação que florescem os discursos de ódio: oferecem identidade pela identificação e alívio pela projeção. Mas a promessa é enganosa. Eliminar o inimigo não elimina a angústia. A violência retorna sempre, à procura de novos alvos.

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Freud sabia que não existia sociedade sem conflito. O mal-estar é inevitável. Mas advertia que só há civilização quando a coletividade se organiza para conter o ódio, criando pactos institucionais que limitem a violência. “A justiça exige que a liberdade de um não se torne a opressão do outro.” O desafio hoje é exatamente este: sustentar a alteridade, reconhecer que o outro não é uma extensão de mim nem uma ameaça a ser exterminada, mas condição de vida em comum. Democracia não é apenas um regime de governo; é também a capacidade de sustentar diferenças sem precisar aniquilá-las, oferecendo espaço para que cada um exista como é.

Isso exige também um trabalho interior. É cômodo culpar apenas os algoritmos. Mais difícil é admitir que cada um precisa olhar para o próprio radicalismo, para o ódio que projeta nos vizinhos, nos adversários, nos estranhos. Sem autocrítica, a agressividade se converte em sentença de morte; com reflexão, pode se tornar motor de criação. Há um nível de amadurecimento que só se alcança quando se pode ser real diante de outro ser humano – uma figura de confiança capaz de acolher nossas contradições sem anulá-las. Esse é o espírito da análise pessoal: oferecer um ambiente onde a destrutividade pode ser transformada em pensamento, em elaboração, em gesto criativo. A psicanálise nos lembra que não há democracia coletiva sem democracia interior – suportar limites, reconhecer a própria pulsão destrutiva e não entregá-la de bandeja a líderes que a legitimem.

A saída não é negar a agressividade, mas reconhecer que ela habita em cada um de nós. Converter a fúria em palavra, o ressentimento em pensamento, o medo em reflexão e coragem para discernir. Esse é um trabalho árduo e silencioso – e, ao mesmo tempo, civilizatório – que cada um precisa assumir. Muitas vezes, esse processo só se sustenta quando pode ser compartilhado com uma figura de confiança, como na análise pessoal, por exemplo, onde a destrutividade encontra espaço de elaboração. No fundo, a psicanálise nos lembra que não há democracia coletiva sem democracia interior, pois é preciso sustentar e negociar internamente as próprias pulsões para não entregá-las de bandeja a líderes perversos que as legitimem. Porque, afinal, o outro não é um inimigo a ser eliminado, mas a condição daquilo que ainda ousamos chamar de civilização.

Camila Camaratta é psicóloga e psicanalista, membro do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA), associada da Federação Latino-Americana de Associações de Psicoterapia Psicanalítica e Psicanálise (FLAPPSIP) e sócia-fundadora da Associação Piera Aulagnier.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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