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A Operação Contenção, deflagrada em 28 de outubro de 2025 no Complexo do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, mobilizou cerca de 2.500 policiais e resultou em mais de 100 mortes, configurando-se como uma das ações mais intensas contra o crime organizado na história recente da cidade. Essa operação não pode ser analisada apenas sob a ótica policial tradicional, mas sim como um confronto que expõe as três dimensões do ambiente operacional do século XXI – física, informacional e humana – em um contexto de violência armada não estatal que desafia o monopólio da força pelo Estado.
Conforme preconiza o Manual de Campanha EB20-MC-10.213 – Operações de Informação, do Exército Brasileiro, toda ação policial ou militar deve perseguir ininterruptamente a legalidade (conformidade com leis e normas), a moralidade (respeito aos princípios éticos e aos direitos fundamentais) e a legitimidade (aceitação pela população e respaldo institucional). Esses pilares não são meros adornos burocráticos: eles interagem diretamente com as dimensões operacionais. Na dimensão física, a legalidade orienta o uso proporcional da força, evitando excessos que violem normas constitucionais; na informacional, a moralidade impede a manipulação de narrativas ou a disseminação de desinformação, preservando a verdade como base ética; na humana, a legitimidade é o oxigênio que mantém o apoio popular, transformando ações coercitivas em operações aceitas pela sociedade.
A Operação Contenção ilustra como a busca por esses valores pode fortalecer ou comprometer o sucesso estratégico, especialmente quando comparada à Operação Arcanjo (2010-2012), que envolveu BOPE, blindados da Marinha e ocupação prolongada do Exército, com cerca de 2.000 operacionais do Exército, mais 250 na logística, 150 policiais militares e 50 policiais civis, além do acompanhamento de perto do Ministério Público Militar.
O planejamento da Operação Contenção foi exemplar ao deslocar o confronto principal para o alto da Serra da Misericórdia, uma área elevada e menos povoada, evitando o envolvimento direto de civis nas zonas residenciais densas abaixo. Essa manobra reflete estudo minucioso do terreno – vielas estreitas, barricadas de concreto, pontos de observação elevados – e uso intensivo de inteligência prévia, incluindo mapeamento aéreo e infiltração de agentes. Relatos da imprensa confirmam que drones de vigilância do Comando Vermelho foram neutralizados ainda na fase inicial, assim como artefatos explosivos improvisados (IEDs) adaptados para lançamento aéreo – uma sofisticação tática que demonstra o nível de armamento das facções.
A Operação Contenção é um alerta: o Brasil vive uma ruptura paradigmática, com atores não estatais competindo pela soberania em múltiplas esferas. Reforçar o monopólio estatal da força é essencial para segurança duradoura
A progressão policial foi cautelosa, com emprego de escudos balísticos, fuzis de precisão e veículos blindados em pontos estratégicos. Essa contenção evitou o caos generalizado que marcava operações anteriores, preservando centenas de vidas civis. A legalidade foi mantida pelo uso proporcional da força: apenas alvos armados foram engajados, conforme protocolos da Polícia Civil e do BOPE, com registros de confrontos limitados a posições criminosas. A moralidade se manifestou na evacuação prévia de moradores e na criação de corredores humanitários, evitando danos colaterais desnecessários. A legitimidade foi reforçada pela percepção de que o Estado agiu para proteger, não para punir indiscriminadamente, com ações que minimizaram impactos em áreas não governadas (black spots), onde o monopólio da força estatal havia sido rompido.
A pandemia de Covid-19 agravou essa dimensão: a ordem do ministro Fachin, atendendo à solicitação do deputado federal Alessandro Molon (PSB), através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, restringiu e burocratizou operações policiais em áreas de controle territorial armado das gangues, levando à expansão dessas zonas, fortalecimento das facções e delimitação mais ostensiva de territórios. Especialistas já alertavam que a retomada exigiria desgaste físico maior, com confrontos mais intensos – exatamente o que ocorreu na Operação Contenção. Cabe cobrar responsabilidade por decisões que criaram vácuos de poder, permitindo o retorno de black spots.
Na Operação Arcanjo, desencadeada na última semana de novembro de 2010, de forma improvisada, a partir de uma onda de violência determinada pelo Comando Vermelho, devido à transferência de lideranças para presídios de segurança máxima do governo federal. A dimensão física foi dominada com sucesso durante a ocupação: blindados da Marinha, BOPE e tropas do Exército garantiram o controle territorial por quase dois anos, empregando aproximadamente 2.000 operacionais do Exército, mais 250 militares na logística, 150 policiais militares e 50 policiais civis, sob acompanhamento próximo do Ministério Público Militar para assegurar legalidade em cada fase. A população circulava livremente, com redução drástica de tiroteios. No entanto, a saída das forças federais em 2012 e a substituição pelas UPPs – sem equipamentos adequados, treinamento contínuo ou blindagem jurídica para os policiais – criaram um vácuo. A insegurança jurídica, com decisões judiciais que limitavam abordagens preventivas, aliada à falta de investimento em viaturas e armamento, permitiu a retomada gradual do território pelo Comando Vermelho. Conforme descreve o analista Alessandro Visacro, o que era um terreno conquistado voltou a ser um black spot – área não governada onde o Estado perdeu o monopólio da força, ilustrando a ruptura paradigmática da era da informação, com atores não estatais desafiando a ordem vestfaliana.
O Manual EB20-MC-10.213 define operações de informação como “o emprego integrado e coordenado de capacidades para influenciar, perturbar ou corromper a tomada de decisão do adversário, enquanto se protege a própria”. Na Operação Contenção, a imprensa teve papel ambíguo: enquanto veículos como G1 e CNN Brasil destacaram a brutalidade do Comando Vermelho – execuções com motosserra, corpos dissolvidos em ácido, crianças recrutadas como “aviõezinhos” –, outros setores da mídia tenderam a humanizar criminosos, focando em “jovens periféricos” sem mencionar o controle social imposto. Visando humanizar e dar um aspecto menos bélico dos bandidos que morreram no enfrentamento à polícia, “moradores” removeram corpos da mata, retiraram as roupas camufladas, botas, armas e coletes à prova de balas. A legitimidade passa a ser questionada por imagens de policiais feridos e criminosos mortos, sem contrapartida de presença estatal pós-operação.
Esse é um conflito armado não internacional, em que grupos fortemente armados, com dezenas de bandidos, se deslocam dentro da cidade; não se enquadra na Constituição Federal (art. 5º), nem nas Convenções de Genebra pós-Segunda Guerra Mundial e protocolos adicionais de 1977 (após descolonizações na África), nem no regime de direitos humanos surgido para proteger populações civis desarmadas – como no massacre de judeus pelos nazistas. Aqui, tratava-se de bandidos armados reagindo à intervenção policial legítima.
A moralidade exige que a imprensa exponha essa realidade: gangues que torturam, estupram e matam para manter o poder local, sem cair na armadilha da humanização que legitima a violência. A legitimidade depende de narrativas que mostrem o Estado como protetor, não opressor, utilizando operações de informação para contrapor a propaganda criminosa. Como comenta o professor Steven Pinker, de Harvard, em sua obra Os Anjos Bons da Nossa Natureza, os lugares mais seguros do mundo são os países democráticos onde o Estado detém o monopólio exclusivo do uso da força. Ou seja, quanto mais essa ideia for reforçada na dimensão informacional, mais segurança jurídica e liberdade de ação as forças de segurança terão para promover a retomada dos territórios.
Na Operação Arcanjo, a gestão informacional fez toda diferença, com o acompanhamento do Ministério Público Militar garantindo transparência. No cenário político da época, o governo federal e a maior parte dos veículos de comunicação tinham máximo interesse em legitimar o sucesso da operação: precisavam passar à opinião pública internacional que o Rio tinha condições de garantir segurança para megaeventos – Copa do Mundo (2014), Jogos Olímpicos (2016), Jogos Mundiais Militares (2011), visita do papa etc.
Havia consenso político para atrair verbas e recursos para infraestrutura, boa parte, possivelmente superfaturada para financiar campanhas de políticos. A mídia nacional alinhou-se: imagens de blindados hasteando a bandeira brasileira, soldados jogando futebol com crianças, moradores aplaudindo. Mortos e feridos do lado criminoso foram minimizados; prisões, celebradas. Não houve interesse em investigar quem eram os “bandidos mortos” – a narrativa política era de vitória. Essa operação de informação, integrada aos 2.000 operacionais do Exército e apoio logístico, garantiu legitimidade internacional e apoio interno; mas a descontinuidade de esforços governamentais após a saída do Exército e interferências do Judiciário com ADPF 635 e a corrupção do nível político mascararam a fragilidade estrutural que levaria ao colapso posterior.
A dimensão humana é essencial no conflito: pessoas, valores, motivações. O Comando Vermelho explora vulnerabilidades culturais para perpetuar seu domínio. O funk proibidão é arma poderosa: letras fazem apologia ao tráfico (“hoje eu vou de AR-15 na pista”), desmoralizam a polícia (“o caveira vai tomar”), estimulam promiscuidade sexual como status (“as novinha do CV tão no corre”) e criam glamour em torno do crime. Artistas que lucram milhões com shows em bailes financiados pelo tráfico transformam bandidos em ídolos, vitimizando-os como “guerreiros da comunidade”.
O Comando Vermelho exerce controle social por meio de toques de recolher forçados, proibição de festas em datas específicas, extorsão de comerciantes e recrutamento de adolescentes. O controle político se dá pela cooptação de associações de moradores, imposição de candidatos políticos, financiamento de eventos comunitários e ameaças a lideranças que se opõem. Economicamente, o domínio territorial permite monopólio da venda de gás, internet pirata, cargas roubadas, cigarro contrabandeado, TV a cabo clandestina e, claro, o tráfico – com faturamento estimado em dezenas de milhões por mês apenas no Complexo do Alemão.
Esse fenômeno deteriora a coesão social: jovens veem no crime uma opção mais fácil de ascensão naquela microssociedade; famílias perdem autoridade; valores como estudo e trabalho são ridicularizados. A imprensa, ao dar espaço a funkeiros que defendem “liberdade de expressão”, ignora que essas letras são propaganda armada. A moralidade exige combate cultural: apoio a artistas independentes, educação midiática, reforço de valores familiares. A legalidade impõe que o Estado atue dentro da lei para desmontar essas redes, sem violar direitos com critérios claros.
Na Operação Contenção, a dimensão humana foi impactada positivamente pelo planejamento físico – menos civis no fogo cruzado – mas negativamente pela ausência de percepção de ações sociais paralelas. Em Arcanjo, com 2.000 operacionais do Exército, 250 em logística, 150 PMs e 50 PCs sob supervisão do Ministério Público Militar, a ocupação trouxe serviços: postos de saúde, cursos profissionalizantes, iluminação pública. Pela primeira vez em décadas, qualquer pessoa podia entrar e sair da comunidade sem medo e não havia vendas ostensivas de drogas ao ar livre. Mas a falta de prioridades dos governos seguintes em manter as conquistas não proporcionou às forças de segurança que permaneceram no terreno a capacidade de manter essa conquista humana. Sem continuidade, o vácuo foi preenchido pelo medo, pelo funk, pelo tráfico.
A Operação Arcanjo foi uma vitória tática, operacional e estratégica temporária: domínio físico com força massiva e supervisão jurídica, narrativa controlada, ganhos humanos. Mas falhou na sustentabilidade – falta de equipamento para UPPs, insegurança jurídica, ausência de plano de longo prazo. A Operação Contenção supera em precisão tática e preservação de vidas, mas repete erros: ausência de ocupação prolongada, risco de retaliação, dependência de megaoperações pontuais. Os resultados momentâneos na dimensão física são altamente positivos, mas as percepções de legitimidade e moralidade serão definidas pelos eventos que ocorrerão nas dimensões informacional e humana deste ambiente operacional.
Desdobramentos possíveis: migração do CV para outras favelas (como já ocorre na Zona Oeste), guerras entre facções (CV vs. TCP), aumento de homicídios por vingança. Economicamente, o crime se reinventa com seguros falsos para lavar dinheiro, BETs, empréstimos via agiotas, financiamento de imóveis com origem espúria. O Estado precisa de presença permanente: bases integradas, inteligência comunitária, investimento social. A legalidade, moralidade e legitimidade devem guiar cada fase, interagindo com as dimensões para romper o ciclo de black spots. Sem elas, vitórias físicas viram derrotas humanas; narrativas informacionais se dissipam; o ciclo recomeça.
A Operação Contenção é um alerta: o Brasil vive uma ruptura paradigmática, com atores não estatais competindo pela soberania em múltiplas esferas. Reforçar o monopólio estatal da força, como defende Pinker, é essencial para segurança duradoura. O Estado precisa de doutrina atualizada, forças preparadas para conflitos assimétricos e vontade política para ocupar não só o terreno, mas a mente e o coração da população.
Fernando Albuquerque Montenegro, coronel da reserva, analista militar e especialista em Forças Especiais.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



