O Brasil é um país ao avesso. Em diversos ciclos da sua economia o empresariado foi favorecido por programas de incentivos fiscais e renegociação de dívidas, como, por exemplo, Plano Safra, Programa Perse, os Refis em geral e parcelamentos tributários, entre outros.
Nunca na história deste país houve um programa que podemos chamar de Refis da pessoa física. Para termos a dimensão do tamanho do problema para os brasileiros, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), da Fecomercio-SP, o endividamento das famílias com renda de até dez salários-mínimos saltou de 63%, em fevereiro de 2020 — mês anterior à declaração da pandemia de Covid-19 —, para 76,9%, em dezembro de 2022. Em outubro do ano passado, o endividamento atingiu, nesse estrato de renda, o patamar recorde de 80,6% da série histórica do levantamento, que teve início em 2010.
Um amplo programa de renegociação de dívidas é uma alternativa concreta de reinserção da população na economia.
A elevação do endividamento foi ocasionada pela “tempestade perfeita” que vivemos desde 2020, com a pandemia, a elevação da Selic — que saltou de 2% para os atuais 13.75% —, a guerra entre Rússia e Ucrânia e, principalmente, a inflação, que corroeu a renda do trabalhador. A maior parte das dívidas não está atrelada a bancos, e sim a serviços em geral, como contas de luz, de telefone e de internet, carnês de loja e prestações de carro e casa. Com isso, o Brasil tem atingido níveis recordes de inadimplência, já que muitas famílias não conseguem pagar suas obrigações em dia.
Esse patamar de endividamento não é nocivo apenas para a população brasileira, mas para todo o sistema econômico do país. Além de induzir as instituições financeiras a elevar as taxas de juros, o endividamento faz com que o consumidor passe pelo processo vexatório de ter seu nome negativado, influenciando muito na sua marginalização pela sociedade e na sua autoestima.
Um estudo sobre endividamento realizado em 2021 pelo instituto Opinion Box em parceria com a Serasa considerou os impactos e efeitos emocionais causados pela inadimplência. Estar endividado é motivo de vergonha para 88% das pessoas, com impacto na vida social (85%) e na concentração no trabalho (76%). O sono de 85% dos entrevistados está sendo afetado por causa das dívidas e seis em cada 10 pessoas ouvidas dizem ter sentido reflexo dos débitos no relacionamento com familiares e amigos.
A constituição de um programa de renegociação de dívidas, como o denominado Desenrola, em vias de ser lançado pelo governo federal, faria a maior reinclusão social do Brasil após o Bolsa Família. Uma iniciativa nesses moldes contribuiria para a melhoria da vida das famílias brasileiras que se encontram endividadas e tem o potencial de reincluir na economia as 70 milhões de pessoas que estão com seus nomes em instituições de proteção ao crédito, conforme declaração do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em janeiro de 2023.
Para efeito comparativo, o Bolsa Família conta com aproximadamente 21 milhões de beneficiários; ou seja, o programa Desenrola pode ser 3 vezes maior que o Bolsa Família do ponto de vista de cidadãos beneficiados e, o mais importante, reincluídos na economia. Segundo estudo da Serasa, as dívidas bancárias vencidas, que poderiam ser renegociadas pelo programa, incluindo dívidas com cartões de crédito, crédito pessoal e cheque especial, somam R$ 88 bilhões. As dívidas não bancárias chegam a R$ 172 bilhões. Tanto as bancárias quanto as não bancárias estão concentradas em segmentos de menor renda da população, o que corrobora o impacto positivo da iniciativa junto à população economicamente mais vulnerável.
Segundo informações não oficiais veiculadas recentemente, o programa Desenrola deve beneficiar quem ganha até dois salários mínimos, o que equivale a aproximadamente R$ 2,6 mil. A ideia do governo seria criar um fundo garantidor, com recursos públicos, para servir como uma espécie de colchão de segurança na negociação dessas dívidas. Assim, a expectativa é conseguir que os bancos repactuem os valores com taxas de juros mais baixas, tendo a garantia de que a União vai cobrir o prejuízo em caso de não pagamento. Na outra ponta, os credores só poderiam acessar a modalidade se concederem descontos na dívida. Essa seria uma condição obrigatória, embora ainda não haja definição se haverá um percentual mínimo de abatimento. Por fim, o programa também teria uma data de corte para delimitar quais dívidas poderão ser incluídas na negociação.
Uma empresa que atua como “sociedade de crédito, financiamento e investimento”, e que atende prioritariamente esse segmento da população, fez uma simulação que ilustra o impacto do Desenrola na capacidade de um cliente em negociar sua dívida num produto de crédito pessoal. No exemplo, um cliente fictício tomou um crédito pessoal de R$ 4.500,00 em janeiro de 2021. Esse cliente pagou em dia até março de 2022 (14 meses), quando deixou de pagar as parcelas, deixando um saldo remanescente de R$ 1.038,00. Em setembro de 2022, sua dívida chegou a R$ 6.723,00 devido a juros, mora e multa.
Ao aderir ao programa, o cliente teria um novo empréstimo, financiado pelo banco participante, relativo ao saldo remanescente de sua dívida e com desconto de 60%, passando a dever R$ 2.289,20. Esse valor, por sua vez, poderia ser pago em até 36 vezes com uma taxa de juros bastante reduzida, resultando em parcelas mais próximas da realidade financeira atual e da sua capacidade de pagamento.
Esse é um exemplo claro do impacto que o Desenrola teria na vida de um cidadão comum brasileiro. Um amplo programa de renegociação de dívidas é uma alternativa concreta de reinserção da população na economia, aumentaria a confiança das famílias e sua intenção de consumo, contribuindo diretamente para a retomada do crescimento do Brasil.
Por fim, tão importante quanto dar essa oportunidade de resgate a milhões de pessoas é promover a educação financeira da população brasileira, das crianças e adolescentes, que cada vez mais cedo tomam contato com decisões envolvendo dinheiro, a adultos e aposentados. Ao mesmo tempo em que as instituições que atuam nesse mercado devem ser responsáveis ao orientar seus clientes sobre sua capacidade de tomar crédito, os próprios cidadãos também precisam conhecer seus limites. Nesse sentido, as crescentes iniciativas de inclusão da educação financeira no dia a dia das escolas são muito bem-vindas — e podem atenuar o interminável ciclo vicioso de superendividamento no Brasil.
Leonardo Grapeia é especialista em transformação digital pelo MIT, mestre em gestão de negócios pela FGV e CEO do Grupo Qista.
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