Parodiando uma brincadeira de criança, poderíamos dizer que um preço de combustível incomoda muita gente, dois preços de combustível incomodam muito mais.
Já em 1930, o Conselho Nacional do Petróleo, enquanto examinava as solicitações de pesquisa e exploração do óleo em nosso território, trabalhava no regramento de como deveria ser realizada, do ponto de vista legal e dos melhores interesses brasileiros, esta exploração. Após anos de intenso debate, foi criada a monopolista Petrobras, em 1953, pelas mãos do presidente Getúlio Vargas, coroando a exitosa campanha “o petróleo é nosso”.
De lá para cá, mesmo com todas as mudanças na legislação sobre a exploração, distribuição e governança do petróleo e seus derivados, as tentações de intervenção governamental na fixação dos preços dos combustíveis foram invencíveis. Todos os incomodados cederam ao cântico sedutor das sereias ou, simplesmente, não resistiram às múltiplas oportunidades de votos ou negócios, sempre com resultados catastróficos, pelo menos para o Brasil. Somente a política de preços da era Dilma custou R$ 100 bilhões aos bolsos de todos nós.
A tarefa de resistir à tentação parece ser tão grande quanto os 61% de brasileiros que defendem a intervenção presidencial nos preços da gasolina, segundo pesquisa Exame/Ideia publicada em 26 de fevereiro deste ano. O Congresso Nacional, legítimo representante de nossa gente, não deve ter porcentuais de opinião muito diferentes.
Agora, neste 2021, quase pós-pandemia, mais uma vez, a gasolina está na casa dos “dois preços”. A lista de fatores concorrentes para isto, internacionais alguns e nacionais outros, é conhecida. Primeiro, a cotação do petróleo vem aumentando desde o início do ano, com o preço do barril ultrapassando US$ 80 em setembro passado, o maior valor desde outubro de 2018. Esta alta decorre da retração da oferta – ação preventiva de parte dos países produtores (Opep) diante da pandemia –, combinada com um aumento da demanda decorrente da retomada das atividades econômicas em um ritmo superior ao esperado. Depois, o câmbio. Países de moeda fraca, como o caso do Brasil, sofrem duplamente: além do aumento do valor do barril, o dólar também está mais caro. Finalmente, além da paridade de preço de importação – medida acertada e necessária em função de nossa insuficiente capacidade de refino (quem iria importar gasolina com o preço interno artificialmente abaixo do mercado internacional? A consequência seria o desabastecimento); a elevação dos custos dos biocombustíveis – que entram na composição da gasolina e do diesel –; e, claro, nossos impostos, notadamente o ICMS, este insidioso vilão estadual, responsável, em muitos casos, por um terço do preço final do combustível.
Nesta análise simples da complexa cadeia de formação dos preços dos combustíveis, e da gasolina em particular, cabe uma notinha informativa: o Brasil ocupava, em 2020, em valores absolutos, a 35.ª posição no valor do litro da gasolina entre 61 países e, em valores relativos ao gasto em relação à renda média, éramos o 11º colocado.
Não chegou a ser uma proposta de privatizar a Petrobras. Talvez tenha sido uma queixa, talvez uma simples reflexão. Não me pareceu uma ameaça.
O resultado da gasolina com preços nas alturas? Muita gente incomodada. Entre elas, o presidente Jair Bolsonaro. Constrangido pelas circunstâncias que o deixam com o ônus político dos aumentos de preço da gasolina, óleo diesel e gás, ele concedeu uma instigante entrevista à rádio Novas de Paz, de Pernambuco, no dia 14 deste mês: “Aumentou a gasolina, culpa do Bolsonaro. Eu tenho vontade, eu já tenho vontade de privatizar a Petrobras. Tenho vontade. Vou ver com a equipe econômica o que a gente pode fazer. Porque, o que acontece... Eu não posso... não é controlar, eu não posso melhor direcionar o preço do combustível. Mas quando aumenta a culpa é minha. Aumenta o gás de cozinha, a culpa é minha; apesar de ter zerado o imposto federal – coisa que não acontece aí, por parte de muitos governadores. Reconheço que os governadores não podem zerar o ICMS. Mas a cobrança do ICMS não pode ser feita em um percentual em cima do preço final da bomba”.
Não chegou a ser uma proposta de privatizar a Petrobras. Talvez tenha sido uma queixa, talvez uma simples reflexão. Não me pareceu uma ameaça. Entretanto, diferentemente de outras falas presidenciais – propostas, comentários, simples piadas ou mesmo soluços –, esta declaração não mereceu, por parte de nenhum setor, uma condenação apocalíptica. Podemos sonhar?
No momento em que o Brasil busca recuperar a plenitude de suas atividades socioeconômicas, e quando as pautas para o ano eleitoral começam a ganhar clareza, quem sabe a proposta de privatizar a Petrobras não escapa de uma quase queixa presidencial e ganha contornos de seriedade? Qual seria o impacto de transformar a secretaria hoje encarregada de privatizar órgãos e companhias menos representativas em uma Secretaria de Privatização da Petrobras? E do Banco do Brasil? Qual seria a repercussão junto a investidores? O que perderíamos dos pontos de vista econômico ou estratégico? E no plano político-eleitoral, conseguiríamos eleger uma bancada com estes compromissos? Um dia estas propostas não elegeriam quase ninguém. E nos dias atuais?
O ex-senador Roberto Campos, entrevistado pelo jornalista Fernando Rodrigues, na Folha de S.Paulo, em 11 de outubro de 2001, respondeu assim à pergunta se ele teria tido poder, ou condições, para abolir o monopólio (então vigente) do petróleo: “Esta é que é a história. Eu propus para o presidente Castello Branco e ele achava que não havia condições históricas. Ele concordava com a tese, mas não tinha condições políticas para implementar”. Presidente Bolsonaro, a condição histórica, 68 anos depois da criação da Petrobras, está posta. Crie as condições políticas. Abra o debate, presidente. Vamos ver quantos se incomodam.
Mateus Bandeira, conselheiro de administração e consultor de empresas, foi CEO da Falconi, presidente do Banrisul e secretário de Planejamento do Rio Grande do Sul.
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