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Em seu processo de independência, as ex-colônias americanas criaram uma figura nova, com mandato temporário – o presidente da República, substituto dos monarcas europeus investidos de vitaliciedade e hereditariedade.
Contudo, enquanto no velho continente as realezas eram investidas de um poder cada vez mais simbólico, cerimonial (servindo o modelo inglês de inspiração para a “constitucionalização” das demais monarquias), por aqui os novos chefes do Executivo concentraram tanto a chefia de Estado quanto a chefia de governo.
Isso deu início a um tipo de governo chamado por muitos “presidencialismo imperial” (a expressão é de Schlesinger Jr. e foi importada por Sérgio Abranches).
Talvez fosse justificada tamanha concentração de poder como forma de sustentar as guerras independentistas. Mas, de toda forma, ao menos e unicamente nos Estados Unidos, ela era significativamente mitigada pela descentralização de competências para os estados – o federalismo.
O próprio processo de formação daquele país – a partir de uma confederação de ex-colônias que buscavam afirmar sua soberania – foi o que impediu esse excesso. Frustrada a fundação da Grã-Colômbia, tal não se deu para cá do México.
Por aqui, os poderes foram severamente concentrados em Executivos centrais, incontrastáveis regionalmente, por mais que as Constituições latinas nominalmente replicassem o federalismo do norte.
No Brasil, esse processo se iniciou em 1891, com nossa primeira Constituição republicana. Antes disso, vigorava um “parlamentarismo às avessas”, um arremedo que pouco lembra o tradicional sistema inglês.
Desde 1847 buscou-se separar formalmente as funções do Executivo e do Moderador, com um novo cargo de presidente do Conselho, funcionando como uma espécie de primeiro ministro.
Mas a experiência não foi bem-sucedida: D. Pedro II intervinha ativamente na vida política do Império, nomeando e destituindo os governantes a seu bel-prazer, dissolvendo a Câmara e chamando novas eleições quando lhe aprouvesse.
Há quem defenda que assim o fosse como forma de garantir alguma alternância no poder entre os partidos – caso contrário, a fraude (que era a realidade) nas eleições teria o potencial de assegurar ao grupo governante uma investidura eterna (algo como o que se dera nas primeiras décadas da República, com o revezamento na Presidência entre republicanos paulistas e mineiros).
A figura absolutista do monarca foi então substituída pela do presidente da República, chefe de governo e de Estado, representante máximo da nação. Seguiu-se, como nos vizinhos latinos, o modelo norte-americano, abandonando-se de vez a experiência parlamentarista, ficticiamente baseada na tradição inglesa.
A partir de então, buscávamos seguir a teoria de Montesquieu, em que os Três Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – deveriam ser independentes entre si.
O que se sucedeu foi um século de instabilidade política – golpes e rupturas institucionais, populismo, autoritarismo e um agigantamento sempre crescente do Estado.
Monarquistas atribuem essa tendência à República, mas se esquecem que foi justamente sob soberanos vitalícios e hereditários que se construiu a história de Portugal e de 400 anos da história deste país – período nada nostálgico quando temos ciência de suas também tão constantes crises políticas e econômicas, sua centralização burocrático-militar-mercantilista, os eternos privilégios da Coroa, as instituições odiosas da inquisição e da escravidão.
Há uma idealização do despotismo esclarecido de D. Pedro II e uma confusão entre seu governo e um sistema monárquico constitucional, que nunca existiu no Brasil. Nossa Constituição de 1824 era abertamente absolutista (vagamente baseada em Constant) e não impunha quaisquer tipos de controle ao soberano, detentor que era do Poder Moderador.
Essa era a “chave” do sistema político do Império, concentrando poderes absolutos, que podiam ser exercidos moderadamente (como o fez) ou tiranicamente como um Calígula ou um Ivan, o Terrível.
Um sistema político eficiente deve ser desenhado para que produza incentivos tendentes ao bom governo, à boa gestão dos recursos públicos, que diminua o oportunismo e a corrupção – e, principalmente, atenue o fator discricionário, “demasiadamente humano”; que reduza nossa dependência das características pessoais do governante, seus vícios e virtudes.
O brasileiro, acostumado com séculos de poder pessoal – ora de reis, ora de ditadores, ora de presidentes com poderes imperiais (capazes de impor, sem a aprovação do Legislativo, “medidas provisórias” e “decretos” que não raras vezes inovam no ordenamento jurídico) – ainda vê, unicamente, como solução para um “mau” governante sua substituição por um “bom” governante. Alguém com os mesmos poderes discricionários que possuía o anterior, mas que, ao contrário de usá-los para o “mal”, comprometa-se a usá-los para o “bem”.
A democracia ainda é vista como a mera possibilidade de eleger o candidato que mais bem simula honestidade, bondade, caridade, compaixão, heroísmo etc., sem levar em consideração aspectos de limitação de poderes, de transparência e de responsabilização.
Em suma, seguimos apostando no “arbítrio do bem”, no despotismo esclarecido (em busca de um novo D. Sebastião ou de um D. Pedro idealizado), sem maiores preocupações com “rule of law”, com a vinculação da autoridade a um sistema de regras estável e previsível.
O presidencialismo, ao concentrar poderes “imperiais” num governante, tornando-o independente do Legislativo, pouco controlável por ele, propicia-nos os césares que buscamos; mas não os césares idealizados por românticos (ou por quem bebeu acriticamente da história escrita por historiadores que tiveram acesso unicamente aos registros oficiais, a máquina de propaganda dos governos), e sim soberanos com muito mais vícios explícitos que virtudes aparentes.
A permanente instabilidade política, as ameaças de rupturas institucionais (“golpes” ou “revoluções”, ao gosto do freguês), a insistência no discurso populista e autoritário e, ao mesmo tempo, o oportunismo e o fisiologismo dos partidos são reflexos disso.
Não só de nossa cultura, influenciada que foi por séculos de instituições patriarcais e patrimonialistas – legando-nos o “jeitinho brasileiro”, nossa tendência, como sociedade, de buscar levar vantagem em tudo; mas da permanência dessas mesmas instituições, que com o tempo mudaram sua roupagem, mas preservaram sua essência.
Dentre os incentivos perversos do presidencialismo, esse sistema baseado no “divórcio” entre Executivo e Legislativo (fundamentando-se numa visão utópica de separação e “independência” desses poderes), destaca-se a falta de responsabilidade e de compromisso do parlamentar com um programa de governo.
Seja um governo de esquerda ou de direita, o que importa para o congressista são as rendas, as vantagens que pode arrecadar para seu eleitorado. Sua maior preocupação é com a reeleição, e para isso é importante fazer parte da base governista, para dispor de emendas parlamentares, cargos e recursos para distribuir em seu curral eleitoral.
Mas isso até o capítulo 2: quando a popularidade do governo está em baixa (o que é bastante frequente, dadas as constantes crises econômicas que o próprio governo gera), seus incentivos são para retirar o apoio do governo, migrando para a oposição.
Isso gera um aumento no custo de governabilidade: para manter o apoio dessa base aliada, o governo terá que dispor de mais recursos, legal ou ilegalmente, o que tende a aumentar a crise econômica e a corrupção.
Em suma, o presidencialismo favorece, no Legislativo, a tomada de decisão oportunista e fisiológica; não à toa o “centrão” é a força prevalecente, não importa o partido no poder
Sua lealdade ao governo é bastante frágil e custa caro; o orçamento acaba comprometido com projetos que visam atender a interesses particularistas, paroquiais, corporativistas. Projetos de interesse mais amplo, nacionais, acabam ficando em segundo plano, sendo adiados ou capturados por grupos de interesse.
Quando muda o governo, a sensação é de que a dinâmica permanece. Reformas institucionais relevantes (como a da previdência ou a tributária), quando caminham, custam muito caro ou são quase completamente esvaziadas.
O governo, mesmo quando tem algum nível de comprometimento com o interesse da maioria silenciosa e desorganizada de contribuintes, não consegue passar reformas que reduzam de fato o inchaço da máquina pública (e, com isso, a tributação); quando o faz, é preciso fazê-lo aos solavancos, muitas vezes com medidas mais ou menos autoritárias, passando por cima do Congresso ou cooptando-o com verbas públicas (o que vai na contramão do objetivo da própria medida intentada).
Com isso, a percepção – correta – é de que o Parlamento age contrariamente aos interesses do país, que não passa de um órgão parasitário, um aglomerado de rent-seekers que se limitam a defender os interesses corporativistas dos grupos de pressão.
A insatisfação popular com a representação parlamentar alimenta o discurso populista dos candidatos a cargos majoritários; o “divórcio” entre Executivo e Legislativo torna-se uma guerra aberta, em que a população se sente cada vez mais representada quanto mais seu candidato se mostra “antissistema”.
Mais uma vez o presidencialismo, autofágico que é, pavimenta o caminho para o surgimento de um novo César, o ditador que fechará o Congresso e governará sozinho, via Decretos-lei (e com um judiciário como sua “longa manus”), com o apoio exclusivo (e temporário) de parte da população.
Há mais de um século, Max Weber via essa tendência no presidencialismo. É um sistema plebiscitário que se contrapõe ao sistema de representação parlamentar (muito mais fundado nos discursos teóricos e ideológicos dos partidos, um debate que soa como grego para as massas) um sistema de representação pessoal baseado no carisma.
O discurso político deixa de lado as questões sobre leis e ideias, sobre os reais problemas que afetam a sociedade, sobre suas causas e efeitos, sobre a adequação entre os meios e os fins das soluções propostas; a racionalidade dá lugar à personalização do debate, em que importam mais as características pessoais dos candidatos. A disputa política reduz-se a uma querela maniqueísta entre o Bem e o Mal.
O sistema parlamentarista, por outro lado, surgiu como uma forma de impor limites ao exercício do poder arbitrário. Tira-se a chefia de governo do rei, permanecendo este com um cargo simbólico, cerimonial (“decorativo”, diria alguém numa carta).
O governo é exercido indiretamente pelo Parlamento, que elege o chefe de governo e por ele se responsabiliza. A esquizofrenia que induz aos conflitos entre Executivo e Legislativo não se verifica aqui.
O governo que bem conduz a economia tende a manter sua aprovação, reconduzido o parlamento, recompensando-se o parlamentar. Se as coisas vão mal, não existe o incentivo para o Legislativo sabotar a economia a fim de fazer o governante cair – pelo contrário, ou o parlamento vota uma moção de desconfiança, trocando o governo, ou ele todo cai junto. Os remédios para as crises são muito mais rápidos, menos dolorosos e mais eficazes.
Na prática, as coisas não são tão simples, pois não existe sistema perfeito. O elemento “demasiadamente humano”, que pode subverter as leis e as instituições e fazer nascer um novo despotismo sempre estará presente em qualquer tipo de organização.
Contudo, há formas que favorecem e há formas que desfavorecem o surgimento desse elemento perturbador. Dir-se-á que Hitler surgiu num sistema parlamentarista; mas, tal como o nosso “parlamentarismo às avessas” do século 19, o parlamentarismo alemão pré-1949 ainda tinha um DNA fortemente imperial.
Naquela época, o presidente eleito ainda tinha um elevado grau de discricionariedade, podendo derrubar arbitrariamente o parlamento, como fez Hindenburg duplamente em 1932, abrindo caminho para Adolf chegar a chanceler.
O sistema constitucional alemão pós-1949 aumentou os controles sobre o Executivo com um Tribunal Constitucional independente – que, ao contrário do nosso STF (que atualmente concentra poderes de tribunal constitucional, tribunal eleitoral, tribunal penal, tribunal civil, partido político, polícia e Ministério Público), serve efetivamente ao sistema de “freios e contrapesos”, de separação de Poderes, com mecanismos que garantem a imparcialidade de seus juízes e afastam-nos do jogo político (são, de fato, árbitros e não jogadores).
Existe, assim, uma série de instrumentos institucionais que visam a garantir uma maior estabilidade política, que poderiam trazer algum grau de prosperidade e aperfeiçoar nossa democracia, livrando-nos da permanente ameaça de autoritarismo, do sempre presente populismo combinado com clientelismo político.
Infelizmente, desde 1889, optamos pelo pior caminho possível, que lega aos países da América Latina um eterno vínculo com os líderes caudilhistas do passado, reencarnados em Chávez, Maduro, Perón, Fidel e companhia.
Por aqui, eles ressurgem como novos "Getúlios", vendidos como salvação do país, sempre opostos às “elites políticas” com as quais terão que se associar — e que continuarão subordinando os interesses nacionais aos interesses particulares das corporações e dos grupos de pressão sobrerrepresentados no Congresso. Isso quando não resolvem enfim apelar para outras alternativas mais extremas, dando início a um novo ciclo de autoritarismo e repressão.
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Lá em 1889, o presidencialismo era endossado tanto por liberais da linha de Rui Barbosa, iludidos pelo sucesso da Constituição norte-americana, quanto pela ideologia positivista de “governo forte”, que visava impor à força interesses “nacionais” em detrimento dos interesses particulares das oligarquias regionais que, segundo seus teóricos, dividiam o império.
O positivismo foi logo derrotado em 1894, com o fim da ditadura de Floriano e o início do domínio dessas mesmas oligarquias. A farsa eleitoral desse novo período, caracterizado pelo “voto de cabresto” e pelas “degolas”, levou à revolução de 1930 e a uma nova ditadura, defensora dos mesmos ideais positivistas, agora com uma nova roupagem, inspirada nos discursos de Mussolini.
A síndrome do discurso do “governo forte” nunca nos deixou desde então. Era a “solução” novamente ofertada pelos militares pós-1964 e pelos petistas pós-2003, agora com seus ataques ao “neoliberalismo”.
O nacional-desenvolvimentismo é a resposta-padrão dos governos presidencialistas (quer na democracia, quer na ditadura), sempre buscando substituir “na marra” interesses “mesquinhos” das elites por uma “vontade nacional” unificada, personificada no líder carismático, o “pai dos pobres” da vez.
No parlamentarismo, a condução da economia não visa suprimir o desenvolvimento de interesses privados, mas formar um programa de governo baseado na conjugação desses interesses.
Agentes privados se associam em torno de um partido ou de uma coalizão partidária que, uma vez empossada no governo, é responsável por fazer esses interesses funcionarem em conjunto.
No parlamentarismo, a sociedade civil, representada nos partidos, é efetivamente “sócia” do governo, e a consecução de interesses particulares depende do sucesso de um programa de governo abrangente e coerente.
Por outro lado, no presidencialismo, onde o apoio ao governo é sempre circunstancial, a consecução de interesses comerciais e industriais depende sempre de uma atuação oportunista, de um verdadeiro rent-seeking em busca de monopólios, concessões, privilégios tributários, crédito subsidiado.
Cada benefício particular obtido resulta, porém, num custo para a sociedade, que arca com os impostos. A conjugação de interesses particulares com um projeto nacional de longo prazo (que se dá no parlamentarismo) dá lugar à busca incessante por fatias do orçamento público, visando ganhos de curto prazo (é o que ocorre no presidencialismo).
Paradoxalmente, o discurso positivista/fascista/nacional-desenvolvimentista de “governo forte” (que justifica o presidencialismo) resulta, quase sempre, num governo fraco, incapaz de implementar medidas de longo prazo, a menos que recorra ao uso da força.
Ao mesmo tempo, cria uma máquina administrativa obesa, ineficiente em prover serviços para a população, mas muito eficiente em distribuir rendas e privilégios para os “amigos do rei”, as minorias organizadas em associações, corporações, sindicatos e partidos, que extraem do orçamento público sem se comprometer com o sucesso ou o fracasso do governo.
Aerton Zambelli L. O. Costa, auditor federal de Finanças e Controle na Controladoria-Geral da União, é bacharel em Direito, especialista em Controle, Detecção e Repressão a Desvios de Recursos Públicos, e mestrando em Direito Internacional.



