Quando o tema é tributação, o maior dos consensos é que o sistema tributário brasileiro é demasiadamente complexo, confuso e um entrave para novos investimentos no país. Reformá-lo é necessário e urgente. Há décadas se busca uma reforma tributária que o simplifique, torne-o menos oneroso e reduza a insegurança jurídica imposta aos investidores. Precisamos melhorar o ambiente de negócios para que o país decole em desenvolvimento econômico e social.
Até aqui não há divergências importantes. É o que todos nós queremos para o país. O problema surge quando outras pretensões secundárias são incorporadas ao projeto da reforma tributária. Uma reforma tributária multifocal reduz as chances de resultados consistentes. O foco deveria ser apenas o desenvolvimento econômico para que, a partir desse ponto, os objetivos fundamentais constitucionais sejam alcançados.
O texto aprovado retira a autonomia dos estados e municípios para a formulação e implementação de políticas econômicas por meio da tributação.
O texto aprovado recentemente pela Câmara dos Deputados tem a virtude de promover expressiva simplificação no nosso sistema tributário e, justamente, sobre os tributos de maior interesse para os entes federativos. No entanto, paralelamente, há riscos elevados de se fragilizarem o pacto federativo e o exercício da democracia.
São riscos desnecessários, introduzidos sutilmente no projeto de emenda constitucional. Uma reforma tributária deve ser apenas uma reforma tributária. Uma eventual intervenção reflexa em princípios estruturantes, justamente no “núcleo duro” da Constituição (“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”), tem potencial de implicar efeitos devastadores para a sociedade e para nossas instituições.
Nossa Constituição carece de reformas e elas vêm ocorrendo ao longo do tempo. O que não precisamos é de reformas com efeitos revolucionários. Da forma como está proposta, a reforma tributária atinge dois pilares estruturais de nossa Constituição Federal: o princípio federativo e o Estado Democrático de direito.
As primeiras tentativas de reforma tributária ocorreram há quase trinta anos. Não se justifica que a votação em dois turnos na Câmara dos Deputados tenha sido tão açodada. Perdeu-se a oportunidade de uma discussão mais ampla justamente na Casa do Povo, com a participação direta da sociedade e de suas instituições, como vem ocorrendo nesse período que antecede a tramitação no Senado Federal. E, de fato, muitas têm sido as contribuições da sociedade, em uma crítica construtiva para um modelo que verdadeiramente melhore o ambiente de negócios para o desenvolvimento econômico e social do país.
As votações em dois turnos foram concebidas pelo constituinte para que as propostas de alteração da Constituição, pela sua relevância e impactos que causam, sejam amadurecidas. Para isso, é necessário que o texto aprovado em primeiro turno seja submetido ao escrutínio da sociedade, estudado pelas instituições democráticas e reexaminado pelos parlamentares. Uma pena que tenhamos sido furtados dessa oportunidade.
No sistema adotado, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), chamado de IVA estadual e municipal, terá gestão compartilhada por Estados e Municípios e unificará o ICMS e o ISS. Uma das mudanças substanciais é que a cobrança é deslocada da fonte produtora para o local de destino dos bens e serviços, da origem para o destino. Com isso, os entes da federação, atualmente com maior arrecadação tributária, dependerão das regras de cálculo que vierem a ser estabelecidas em lei complementar para compensá-los pela perda de arrecadação.
Como se sabe, em cada turno de votação de uma emenda constitucional são necessários 3/5 do número de membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, enquanto para a aprovação de uma lei complementar basta a maioria absoluta de seus membros, em turno único. Como o número de deputados federais eleitos pelos Estados das regiões Sudeste e Sul, onde estão concentrados 50% do PIB brasileiro (fonte: dados abertos do IBGE), representa a metade da Câmara dos Deputados, a Reforma Tributária não seria aprovada sem o apoio desses estados.
Acontece que a composição do Senado Federal adota o princípio majoritário, com o mesmo número de senadores por estado. Sendo assim, os Estados produtores já não gozarão da mesma vantagem representativa nas próximas votações do texto, aprovado na Câmara dos Deputados.
Como já apontamos acima, o texto aprovado retira a autonomia dos estados e municípios para a formulação e implementação de políticas econômicas por meio da tributação. A competência constitucional tributária, na prática, foi deslocada para um órgão central em Brasília, o Conselho Federativo. A política tributária sobre os dois principais impostos estaduais e municipais deixa de ser exercida diretamente por governadores, deputados estaduais, prefeitos e vereadores.
Assim, os representantes eleitos pelo voto popular transferem suas competências constitucionais para um conselho de representantes que concentrarão as competências para editar normas, interpretar e aplicar a legislação tributária, arrecadar o IBS e solucionar controvérsias com os contribuintes do imposto. O mesmo artigo 156-B estabelece também que a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional passarão a exercer competências sobre o IBS para harmonizar normas e interpretá-las.
Diante das incertezas acerca das regras que venham a ser adotadas durante o período de transição, a tendência é que a médio e longo prazo observemos uma redistribuição de arrecadação tributária entre os entes da federação. De qualquer forma, os entes da federação deixam de ter autonomia para se sujeitarem a um fórum de negociações entre si, com todas as incertezas sobre o resultado dessas discussões.
De imediato, os entes da federação de vocação para a produção industrial e agrícola ou voltados para serviços relevantes ao setor produtivo já começam com um grande problema que, provavelmente não será resolvido pela lei complementar ou pelo Conselho Federativo. Estados e municípios mais populosos possuem necessidades orçamentárias em maior proporção e elas não serão reduzidas ao longo do tempo. Saúde, educação, segurança pública, urbanização, infraestrutura e os mais diversos investimentos precisarão ser mantidos, independentemente da queda de arrecadação. De fato, a guinada em 180° da tributação na origem para destino foi radical e com iminentes efeitos reflexos negativos devastadores. As prioridades orçamentárias e os compromissos foram definidos pelos entes da federação de acordo com uma realidade socioeconômica que, pelas novas regras de arrecadação, deverão passar por uma revisão sem precedentes.
Caso seja mantida a nova regra, ao menos que se amenizem seus efeitos. Uma sugestão seria o Senado Federal substituir a concentração da arrecadação nos entes da federação de destinação/consumo dos produtos e serviços pela repartição igual entre origem e destino, e respeitando uma escala gradativa durante um período de transição. Seria algo muito mais objetivo e seguro do que se confiar em um fundo de compensação, a ser definido em regras complementares e negociado em um Conselho Federativo pré-concebido para solução de controvérsias.
Quando as controvérsias não forem solucionadas no Conselho Federativo, você já sabe onde a conta vai chegar – no bolso do contribuinte. Aumento de carga tributária é só uma questão de tempo. A reforma tributária deve produzir os resultados que todos esperam, seja em simplificação, seja em redução da carga tributária; contudo, sem fragilizar dois pilares de nossa Constituição Federal: o princípio federativo e a democracia.
Julio Cesar Vieira Gomes é doutor e mestre em Finanças Públicas e Direito Tributário, especialista em Direito Tributário e Ciência Política. Ex-Conselheiro Presidente de Câmara no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), advogado na Domingues Sociedade de Advogados e ex-secretário especial da Receita Federal do Brasil.
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