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O que você salvaria se um tornado destruísse sua casa em 30 segundos?

(Foto: Imagem criada utilizando Open AI/Gazeta do Povo)

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Encontrei um senhor no abrigo da cidade. Ele estava sozinho, triste, isolado. Seu olhar estava distante, como quem revisita um quarto escondido da memória. Ele tinha acabado de perder a casa, o carro, os documentos. Perdeu tudo que construiu em toda sua vida por causa do tornado. Porém, a sua dor maior era outra.

Os ventos que arrancaram árvores pela raiz, postes de luz e telhados, destruíram a casa e levaram a foto da filha. A foto ficava no rack da sala, encostada na imagem de Nossa Senhora Aparecida e na Bíblia aberta no Salmo 90, com o terço servindo de marca-página. Era a única lembrança do rosto dela criança, já falecida. Assim, ele enterrou a filha pela segunda vez.

Fico imaginando a foto de papel fosco, amarelada pelas bordas, com pequenas dobras nos cantos de tanto pegar com as mãos. O rosto da criança com sorriso tímido, vestida com roupa de domingo, e fundo azul desfocado dos estúdios fotográficos de cidade do interior. Era uma foto que ninguém digitalizou porque ninguém pensou que precisava. Afinal, ela sempre esteve ali.

O senhor não chorou pela casa. Chorou porque agora precisa reconstruir o rosto da filha na memória. Quem iria imaginar um tornado aqui? Ainda mais no interior do Paraná?

O trauma não vem dos móveis perdidos, mas do medo congelado no rosto dos filhos quando o céu escurece e ameaça chover

O som do tornado chegando era igual a três helicópteros voando baixo, me contou uma senhora na porta de casa. Foram 30 segundos que mudaram a vida dos moradores do Rio Bonito do Iguaçu. A cidade parecia bombardeada. Era impossível andar de carro pelas ruas, bloqueadas por escombros, carros destruídos e postes arrancados. No escuro, reinava o silêncio pesado da destruição.

A vida de Adriana Lopes, mãe solo de seis filhos, mudou naqueles segundos. Minutos antes, ela havia recolhido roupas do varal. Ao entrar no quarto para pegar um lençol, ouviu o estrondo. Na sala, a filha de 11 anos, num ato de desespero e coragem, tentava empurrar o sofá contra a porta arrombada.

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Era quase a hora do jantar. As crianças já tinham voltado da escola, o fogão estava ligado esquentando a comida. Trinta segundos antes, era só uma sexta-feira. Quando o estrondo veio, as crianças correram para debaixo da mesa da cozinha. Adriana ficou de pé, porque a mãe não tem o luxo de se proteger sem pensar primeiro nos filhos. O telhado voou. O vento apagou o fogo do fogão. Ficaram ali até o silêncio voltar.

As janelas ficaram todas quebradas. O guarda-roupa da vizinha estava em seu quintal. Depois do tornado, veio a chuva. Adriana perdeu todos os móveis, roupas e documentos. O trauma não vem dos móveis perdidos, mas do medo congelado no rosto dos filhos quando o céu escurece e ameaça chover.

No abrigo, Adriana dorme abraçada aos filhos. Quando troveja lá fora, ela aperta mais forte. Do outro lado, o senhor continua sentado no mesmo canto. Ele fecha os olhos e tenta lembrar se a menina tinha covinha quando sorria. Já não tem certeza.

Breno Barros é jornalista e escritor.

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