Ainda hoje há os que, seja por teimosia, indiferença ou simples ausência de espírito democrático, seguem vendo os desmandos dos onze deuses togados como necessários para salvaguardar a democracia. A eles se une o deus número um, o “guardião da democracia”, a quem, em homenagem, bustos deveriam ser erguidos em praças públicas, conforme sugeriu um deputado distrital do PT. Moraes, cuja segurança na legalidade de seus atos e na sobriedade de suas decisões é tamanha que a todo tempo ele sente a necessidade de justificar perante setores da opinião pública o que faz e tem feito, admite, sem ruborescer, que TSE, MPF e, é claro, STF, “inovaram” (leia-se: agiram ao arrepio da lei) para “preservar a Constituição” (sim, vocês leram certo) e a democracia.
Excetuando os teimosos, agora todos podem ver que o salvamento da democracia vislumbrado por nossos “guardiões” é eterno. Alguns diriam que a derrota de Bolsonaro — celebrada pública e calorosamente por Barroso — bastaria para nos tirar do regime de exceção judicial. Outros viam a frustração dos golpistas do dia 8 de janeiro como a promessa de retorno à “normalidade”. Claro que nada disso teria jamais justificado a exceção e o ativismo judicial, mas não há como não registrar estas diferentes leituras. Acho que já podem admitir que estavam enganados, não? Seja o fantasma do bolsonarismo, os ataques em escolas, as fake news, ou qual seja o inimigo da vez, a exceção seguirá sendo justificada e a democracia seguirá como uma donzela em apuros à espera de um cavaleiro valente. Não só isso: é preciso disseminar o controle do discurso em nome da “liberdade com responsabilidade” (as aspas serão necessárias enquanto essa frase seguir sendo ultrajada por gente hostil ao espírito liberal) em todas as esferas, incluindo na imprensa. Foi com esse espírito que o STF decidiu que veículos de imprensa podem ser responsabilizados por falas de seus entrevistados.
Acreditar que, uma vez engrandecidos em poder, os ministros do STF conteriam a si mesmos ou que a rotina de achaques ao direito de se expressar pouparia a imprensa extrapola a ingenuidade.
O caso em tela foi uma ação do ex-deputado federal Ricardo Zarattini Filho contra o Diário de Pernambuco, que publicou uma entrevista em que o entrevistado imputou um crime ao ex-deputado (participação em um atentado a bomba em 1966). O relator, ministro Marco Aurélio Mello — que tem se notabilizado por críticas a decisões de seus antigos pares e pela defesa da liberdade de expressão —, havia votado contra a ação e em favor do jornal. Na retomada do julgamento, como não poderia deixar de ser, Alexandre de Moraes abriu a divergência e foi seguido pela maioria.
Muitos podem simpatizar com a ação do deputado, por se tratar da imputação de um crime grave, porém, lembremos que há uma grande diferença entre publicar uma entrevista e emitir opinião. O entendimento de Marco Aurélio Mello foi o de que o jornal só poderia ser responsabilizado caso tivesse emitido juízo de valor, o que não fez. Com a decisão do STF, em tese, jornais podem passar a ser responsabilizados por toda e qualquer declaração de entrevistados contra personalidades públicas, primordialmente políticos. As consequências são evidentes.
A mera perspectiva de uma potencial responsabilização poderá fazer jornalistas ficarem excessivamente cautelosos, praticando autocensura, com efeitos deletérios para a vigilância do poder público e a denúncia da corrupção. Apenas lembrem que o estopim para o que resultaria no impeachment de Collor foi a publicação, pela revista Veja, de uma entrevista com o irmão de Collor imputando um esquema de corrupção ao tesoureiro da campanha presidencial, PC Farias. Também não podemos descartar o risco de que esse entendimento sobre entrevistas venha a ser extrapolado em decisões judiciais futuras sobre matérias jornalísticas em si, o que dinamitaria o papel da imprensa na fiscalização do poder público.
Nada disso importa a uma corte que tem agido de forma corporativista. A verdade é que o julgamento da ação acabou lhes sendo muito oportuno. Por quê? André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão e direito digital, identifica no argumento de Moraes uma analogia entre as plataformas digitais e veículos de mídia, em linha com o que o ministro tem defendido, inclusive em entrevistas e palestras, e na esteira do que inspirou o PL da Censura. Marsiglia vai na jugular: “Moraes não é exatamente um ourives do Direito. Não está interessado se o autor da fala é anônimo ou identificável, se há ou não edição do conteúdo, se a declaração é opinativa ou informativa, dotada ou não de interesse público. Tudo isso deve parecer uma chateação imensa à cabeça de ministros que querem resumir a coisa toda a uma fórmula fácil: veiculou, pagou. Desta forma, os julgamentos podem ser feitos na baciada, podem orientar as demais instâncias, podem delegar às plataformas punir conteúdos sem a participação do Judiciário, como exige o PL das fake news”.
Sei que a decisão não foi bem recebida por setores da mídia, mesmo entre os que costumam aplaudir as “inovações” do STF. Ora, acreditar que, uma vez engrandecidos em poder, os ministros da corte conteriam a si mesmos ou que a rotina de achaques ao direito de se expressar pouparia a imprensa extrapola a ingenuidade. Há jornais e jornalistas (e não são poucos) que estão em flagrante apoio ao PL da Censura (e interesse nisso, eles têm de sobra). Sobre os jornalistas chapa branca que encontram desculpas quando Lula incensa Maduro ou algum outro ditador por aí, nem preciso comentar. Criticar a imprensa, é bom lembrar, é muito diferente de atacar a liberdade de imprensa. Por princípio, defendo e defenderei a liberdade de imprensa sempre, ainda que abundem os profissionais desse ramo que só lembrem de defender a liberdade de expressão na parte que lhes toca — e olhe lá.
Gabriel Wilhelms é graduado em Música e Economia e é colunista no Instituto Liberal.
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