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O rei Charles III recebeu recentemente Donald Trump em visita oficial no Castelo de Windsor com pompa real e um banquete de gala. À mesa, estavam não apenas políticos, mas também CEO’s da área digital, como Tim Cook (Apple), Satya Nadella (Microsoft), Jensen Huang (Nvidia) e Sam Altman (OpenAI). O encontro, que poderia ser lido como cerimônia meramente simbólica, revelou algo mais profundo: a diplomacia do século 21 inclui hoje os “novos senhores” da era digital.
A cena nos remete ao período medieval e moderno, quando reis precisavam da aliança de grandes senhores de terra, banqueiros e mercadores para sustentar guerras e administrações. O banquete em Windsor foi a imagem perfeita desse paralelismo: a monarquia emprestando sua aura cerimonial a líderes de tecnologia digital que moldam o presente.
O banquete de Windsor não foi apenas uma festa de gala: foi o retrato de uma nova ordem em que reis, presidentes e magnatas digitais se reúnem à mesma mesa
Não fazemos um mero exercício de retórica aqui. Autores como Cédric Durand (Technoféodalisme, 2020) defendem que vivemos sob um regime de “senhorios digitais”, em que plataformas extraem rendas monopolistas semelhantes às obrigações feudais.
O economista grego Yanis Varoufakis reforça (em Technofeudalism: What Killed Capitalism, 2023) que o capitalismo clássico foi substituído por um sistema no qual as “nuvens” funcionam como feudos globais digitais. Análises mais conhecidas, como a de Shoshana Zuboff em The Age of Surveillance Capitalism (2019), ajudam a entender como o controle de dados pessoais cria dependências e sujeições que lembram a servidão.
Se antes o camponês estava preso à terra e dependia das permissões do senhor feudal, hoje o trabalhador depende do aval das plataformas digitais para continuar garantindo, de forma precária, o seu sustento. Antes, ele usava suas ferramentas para produzir na terra de outro; agora, precisa investir do pouco que tem para rodar com a própria moto nas entregas ou dirigir o próprio carro no transporte de passageiros.
Os números falam por si. Em agosto de 2025, as cinco maiores empresas de tecnologia (NVIDIA, Microsoft, Apple, Amazon e Alphabet) tinham valor de mercado combinado de aproximadamente 15,5 trilhões de dólares, segundo dados da plataforma de inteligência de mercado AlphaSense, que agrega e facilita a busca e análise de documentos públicos e privados.
Essa cifra supera o PIB anual de muitos países desenvolvidos. Essas big techs exercem controle de dados, redes de comunicação e logística global. O escândalo da Cambridge Analytica em 2018nvolvendo o Facebook e a empresa com a coleta indevida de dados de usuários, mostrou como plataformas digitais podem manipular eleições, ao usar as informações coletadas para criar perfis psicológicos e direcionar propaganda política.
Outro exemplo foi durante a pandemia, quando a Amazon que manteve cadeias de suprimento, enquanto a Microsoft foi uma das que garantiu serviços em nuvem ao Pentágono. Não se trata apenas de mercado, mas de soberania.
Portanto, pensando numa analogia e comparação estrutural (mas não em uma equivalência histórica direta com os tempos medievais) podemos dizer que vivemos numa sociedade tecnofeudal. Em vez de terras, o poder se concentra em plataformas e algoritmos.
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O cidadão comum tornou-se análogo ao camponês medieval, dependente da terra ou da plataforma que não lhe pertence. O banquete foi um lembrete explícito: governos e até monarquias se alinham aos barões tecnológicos, não estão acima deles. Seria o Estado ferramenta para quem domina ou instância que deveria garantir equilíbrio e justiça social? Uma coisa é o que ele deveria ser; outra é o que ele realmente é.
É verdade que o mundo atual possui outros mecanismos legislativos, imprensa crítica e organismos internacionais. Mas a lógica remete a elementos da sociedade feudal: concentração de poder, privilégios, redes de dependência. Quem controla as plataformas controla fluxos de informação e, portanto, parcelas imensas da vida social e política. Tal qual um monarca medieval, dependente de grandes senhores e mercadores, os governantes atuais buscam as bênçãos dos donos do capital no Vale do Silício.
Se não quisermos que o século 21 seja dominado por feudos digitais, precisamos recuperar a função redistributivista do Estado, de regulação democrática conduzida pela sociedade civil, bem como transparência nos algoritmos, soberania tecnológica e alternativas descentralizadas.
O banquete de Windsor não foi apenas uma festa de gala: foi o retrato de uma nova ordem em que reis, presidentes e magnatas digitais se reúnem à mesma mesa. Se nada mudar, o castelo do futuro será feito de bytes tal como em um jogo do Minecraft ou Roblox. Nele, os magnatas serão os senhores, os governantes os vassalos e todos nós, cidadãos comuns, os servos.
Mariana Bonat Trevisan é doutora em História Medieval; Rogerio Pereira da Cunha é doutor em História. Ambos são professores dos cursos de História, da Área de Língua e Sociedade, do Centro Universitário Internacional UNINTER.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



