Se depender da esquerda brasileira, que já tem um “ano que não terminou”, o país também terá um “dia que não terminou”: 8 de janeiro de 2023. Assim como ocorreu no primeiro aniversário dos atos de invasão e depredação na Praça dos Três Poderes por parte de brasileiros indignados com a eleição de Lula para a Presidência da República, o governo federal realizará mais um espetáculo nesta quarta-feira com direito a discurso, entrega de obras de arte restauradas e até um ato no qual Lula descerá a rampa do Planalto com autoridades para dar, junto com o público que estiver presente ao local, um “abraço simbólico” na democracia.
Por ocasião do primeiro aniversário do 8 de janeiro, lamentávamos o fato de as autoridades responsáveis pela persecução penal terem desperdiçado a chance de mostrar compromisso autêntico com a democracia ao conduzir as investigações e julgamentos com o máximo critério, levantando provas para identificar depredadores, instigadores e golpistas realmente dispostos a derrubar o governo Lula, acusando-os de crimes concretos cometidos e condenando-os a penas proporcionais. Em vez disso, a PGR ignorou a necessidade de individualização da conduta, oferecendo denúncias genéricas que o STF aceitou, condenando centenas de brasileiros a penas que chegam a 17 anos em regime fechado sem uma única evidência que comprovasse a ação criminosa dos réus.
O termo “simbólico”, no caso do tal “abraço à democracia”, nunca fez tanto sentido, porque não há nada verdadeiro ali em termos de apreço aos direitos, garantias e princípios democráticos
O segundo ano pós-8 de janeiro não viu nenhum tipo de correção de rumos neste sentido. Nos últimos 12 meses, o Brasil conheceu com mais detalhes histórias como a da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, cujo único ato que pode realmente lhe ser imputado era o de escrever “perdeu, mané” com batom na estátua da Justiça diante do STF. Ela está presa até agora, longe dos dois filhos pequenos – apesar de toda a jurisprudência que garante às mães o direito à prisão domiciliar, Alexandre de Moraes não apenas lhe negou a soltura, como a transferiu para um presídio ainda mais distante de sua casa (mais recentemente, ela voltou a ser transferida, para mais perto da família, embora siga presa). A denúncia contra ela só foi oferecida 14 meses depois de sua prisão, 12 meses além do prazo legal; o STF já a transformou em ré, mas ainda não a julgou.
Outro caso escancarado de arbítrio foi a ordem de Moraes para que mais de 200 réus ou condenados voltassem para a cadeia, em junho de 2024. Nenhum deles tinha condenação transitada em julgado, e nenhum mandado de prisão obtido pela Gazeta do Povo mencionava desrespeito a medidas cautelares como uso de tornozeleira. Mesmo assim, o ministro decretou a prisão preventiva usando como argumento o fato de alguns outros manifestantes terem conseguido deixar o Brasil. Com isso, Moraes puniu várias pessoas pelo que elas não fizeram, de forma paranoica e abusiva.
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Nos desdobramentos mais recentes, com a divulgação de um suposto plano para eliminar Lula, Moraes e o vice-presidente Geraldo Alckmin, e o indiciamento de Jair Bolsonaro e dezenas de outras pessoas no caso da “minuta do golpe”, o arbítrio também se fez presente, como na prisão injustificada do general Braga Netto e na mudança radical de versões no caso do ex-assessor Filipe Martins: ele fora mantido preso por meses devido a uma viagem que nunca fez, mas as autoridades, em vez de reconhecerem o erro, simplesmente passaram a dizer que tudo não passava de um estratagema para enganar os investigadores.
Não há democracia em nada disso, muito pelo contrário. Mas, neste dia 8 de janeiro, muitos posarão como seus defensores: um presidente da República especializado em afagar ditadores; um presidente do Senado que não mexe um dedo para fazer da casa que preside um contrapeso decente aos desmandos do STF; um presidente da Câmara lento para defender prerrogativas democráticas de seus colegas; ministros do STF especializados na censura e na perseguição a críticos. O termo “simbólico”, no caso do tal “abraço à democracia”, nunca fez tanto sentido, porque não há nada verdadeiro ali em termos de apreço aos direitos, garantias e princípios democráticos. Não é exagero dizer que, muito provavelmente, abraçar a democracia só serve para facilitar que todos continuem apunhalando-a pelas costas.