Os governadores de vários estados, incluindo alguns dos mais encrencados em termos de endividamento, foram levar o pires a Lula e saíram com o que desejavam: um novo programa de renegociação. Ironicamente, a nova proposta, chamada “Juros por educação” e apresentada aos governadores pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (mas não pelo ministro da Educação, Camilo Santana), consegue a proeza de ser “boa” para todas as partes da pior forma possível: os governadores saíram ganhando porque o programa recompensa e incentiva a irresponsabilidade fiscal – seja a própria, seja a herdada de antecessores do mesmo grupo político ou mesmo de adversários; o governo federal sai ganhando porque, sendo estatólatra por natureza, terá a oportunidade de inchar ainda mais sua estrutura.
Os estados, hoje, pagam suas dívidas com a União a uma taxa equivalente ao IPCA mais 4% ao ano. O governo federal acena com a redução dessa taxa real se a economia feita pelos estados for aplicada na ampliação de vagas de ensino médio técnico: ela passaria a ser de 3% se o investimento for de ao menos 50% da economia obtida, podendo chegar a 2% nos estados que investirem toda a economia feita. O próprio programa, no entanto, já prevê a possibilidade de que esses recursos não sejam usados no ensino técnico, mas em outras modalidades de ensino – alguns governadores já disseram que gostariam de alargar o conceito de “investimento em educação” para contemplar despesas com mobilidade urbana que facilitem o deslocamento de estudantes. Em outras palavras, as contrapartidas já são, de início, bastante camaradas.
A irresponsabilidade foi a marca de inúmeras administrações estaduais, que elevaram gastos durante anos de bonança, concedendo aumentos extravagantes a um quadro de servidores em expansão acelerada e deixando de fazer reformas necessárias
O programa de renegociação não termina aí. Além de reduzir os juros por meio da expansão do ensino técnico, os estados poderão diminuir ainda mais a taxa se abaterem parte do principal da dívida entregando à União empresas estatais. O governo de Minas Gerais – um dos mais endividados, ao lado de Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, quarteto que responde por quase 90% da dívida total dos estados brasileiros – já se antecipou e ofereceu a Companhia de Desenvolvimento Econômico de Minas Gerais (Codemig), que explora nióbio; além disso, o governador Romeu Zema já se disse favorável à federalização da Cemig, a companhia estadual de energia.
Para um governo como o petista, até hoje inconformado com a diminuição do portfólio promovida nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer e Jair Bolsonaro, com privatizações, concessões, desinvestimentos e diminuição de participações acionárias, a chance de colocar a mão em novas estatais é tentadora demais. Se o desmonte da Lei das Estatais for confirmado pelo STF, o governo terá à disposição inúmeros novos cargos para preencher com velhos amigos e com aliados de ocasião.
Por mais que vários estados hoje tentem se passar por vítimas de um governo federal que cobra demais, a verdade é que a irresponsabilidade foi a marca de inúmeras administrações estaduais, que elevaram gastos durante anos de bonança, concedendo aumentos extravagantes a um quadro de servidores em expansão acelerada e deixando de fazer reformas necessárias como a das previdências estaduais – tudo isso, é bom que se diga, com o incentivo de Lula em seus dois primeiros mandatos, em meio à euforia do pré-sal e dos megaeventos esportivos que o Brasil sediaria nos anos seguintes. O resultado óbvio foi a quebradeira, que se mostrou especialmente dramática nos casos fluminense e gaúcho. A forte perda de arrecadação com a limitação do ICMS sobre combustíveis e energia elétrica, aprovada pelo Congresso em 2022, certamente prejudicou a capacidade financeira dos estados, mas em vários casos o caos fiscal já estava instalado muito antes da mudança na tributação.
Sucessivos governos federais ofereceram planos de renegociação, mas todos seguiam roteiro semelhante: primeiro, as restrições eram levantadas e os benefícios eram concedidos, para só então as contrapartidas serem cobradas. Como consequência, os estados deitaram e rolaram; o caso mais escandaloso foi o do Rio, que adiou até onde foi possível a privatização da Cedae, sua estatal de água e saneamento básico, e, com a venda concretizada, ficou com o dinheiro e deixou o governo federal na mão. Como se não bastasse, o STF também colaborou com os estados e municípios endividados impedindo que a União bloqueasse repasses dos fundos de participação para recuperar parte do dinheiro. Quem haverá de imaginar que desta vez será diferente?
E pensar que o Brasil esteve perto de ter um programa realmente bom de alívio aos estados. Em 2019, o então secretário de Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, elaborou um plano que invertia a ordem dos programas anteriores: primeiro, os estados entregariam as contrapartidas, podendo escolher algumas medidas dentre uma lista que incluía reformas estruturantes, privatizações e redução de benefícios fiscais, e só depois de feita a lição de casa a ajuda seria concedida. A nova lógica ainda tinha o efeito de reduzir o “risco moral” apontado à época por técnicos do Tesouro e que consistia na convicção, da parte dos governadores, de que poderiam seguir gastando impunemente pois mais cedo ou mais tarde o socorro federal viria. Apelidado de “Plano Mansueto”, o programa foi destruído ao passar pelo Congresso, e transformado em um pacote de ajuda aos estados durante a pandemia. A chance de vermos algo parecido ao Plano Mansueto no futuro próximo é inversamente proporcional à certeza de que a população, mais uma vez, será chamada a pagar pela farra nos estados.
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