O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), mostrou que não tem limites na hora de impor seu “tratoraço”: os deputados aprovaram a regulamentação de parte de uma das reformas estruturantes mais importantes do país, a tributária, sem saber o que exatamente estavam votando. A versão final do parecer foi entregue aos parlamentares apenas alguns segundos antes do início da votação, tornando impossível aos deputados conferir com calma as mais de 300 páginas para verificar se havia ali algo diferente do que havia sido proposto anteriormente, ou até mesmo que violasse algum dos inúmeros acordos feitos para viabilizar a votação, já que no plenário foram apresentadas nada menos que 804 emendas. No fim, o texto foi aprovado por 336 votos a 142, e a grande discussão acabou girando em torno da paternidade de uma medida específica.
A inclusão das carnes e queijos na lista de produtos e serviços que serão isentos da cobrança do novo imposto sobre valor agregado foi aprovada por 477 votos contra apenas três – no texto-base, a proteína animal teria redução de 60% em relação à alíquota padrão. A emenda foi proposta pelo PL e tinha apoio da bancada ligada ao agronegócio, mas no plenário acabou contando com o voto da base aliada do governo Lula – que, segundo deputados da oposição, teria percebido que a aprovação da emenda era inevitável e não quis arcar com o ônus político de se posicionar contra a isenção. No dia da votação, o líder do PT na Câmara, José Guimarães, afirmou em entrevista que Lula lhe havia telefonado e autorizado a inclusão da carne entre os itens da cesta básica com alíquota zerada.
O país está perdendo uma enorme oportunidade de construir um sistema tributário mais justo, que desonere a parcela mais pobre da população, e que reduza a carga que o Estado coloca sobre os ombros de cidadãos e empresas
Na mesma ocasião, Guimarães já tentou capitalizar sobre a medida. “Evidentemente, quem melhor defendeu essa bandeira foi o presidente Lula”, afirmou ao canal CNN Brasil. Após a votação, a primeira-dama Janja publicou vídeo ao lado do ministro Fernando Haddad exaltando a isenção das carnes como “vitória de Lula”. O fato, no entanto, é que a equipe econômica era contrária à medida, alegando que ela elevaria em cerca de meio ponto porcentual a alíquota padrão imposta a todos os demais itens fora da lista de isenção. E o presidente Lula, nas manifestações públicas sobre o tema, defendeu uma isenção parcial, apenas para o frango e a “carne que o povo consome”, mencionando explicitamente o músculo, o coxão mole e o acém, enquanto a “carne chique (...) pode pagar um impostozinho”, como afirmou em entrevista a uma rádio baiana.
Ao menos em um ponto, reconheça-se, a equipe econômica tinha razão em sua objeção: qualquer isenção – seja ela sensata ou insensata, seja resultado de lobby ou de reflexão ponderada – de fato eleva a alíquota padrão, o que por sua vez encarece o preço final de outros produtos e serviços, inclusive aqueles que os pobres também consomem. Por isso vários tributaristas defendiam que uma alternativa melhor à isenção das carnes seria uma ampliação do sistema de cashback, em que os mais pobres, com inscrição no Cadastro Único, receberiam de volta os valores pagos em impostos. O cashback até está presente na reforma tributária, mas de forma mais modesta.
Para contornar este argumento, no entanto, os deputados recorreram a uma ficção: uma trava que impediria a alíquota padrão de superar 26,5%; caso ela supere este porcentual em 2033, ano em que termina o regime de transição e os novos impostos começam a vigorar plenamente, o governo seria obrigado a enviar um novo projeto de lei complementar revendo as isenções e alíquotas reduzidas. Considerando o que aconteceu com o teto de gastos e com o arcabouço fiscal petista, ambos desmoralizados e contornados na primeira oportunidade, quem em sã consciência acreditará que os congressistas de 2033 realmente se preocuparão em limitar a arrecadação?
Elogie-se a reforma no que tem de bom, como a simplificação nos tributos e o fim da guerra fiscal. Mas é preciso dizer, também, que o país está perdendo uma enorme oportunidade de construir um sistema tributário mais justo, que desonere a parcela mais pobre da população, e que reduza a carga que o Estado coloca sobre os ombros de cidadãos e empresas, retirando da economia muito mais do que devolve em serviços e investimentos, já que boa parte dos impostos serve para apenas manter o inchaço estatal. Toda a discussão sobre a alíquota do futuro imposto sobre valor agregado, afinal, parte do pressuposto de que o governo não quer perder um único centavo de arrecadação, em comparação com os cinco impostos que serão substituídos pelo IBS, pela CBS e pelo Imposto Seletivo. No Senado, já se desenha um movimento contrário à tramitação apressada, mas é bem improvável que os senadores, se conseguirem desacelerar o projeto, aproveitem também para fazer as alterações profundas que seriam necessárias para melhorar substancialmente o sistema tributário nacional.
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