A cultura da morte deu mais um passo adiante nesta segunda-feira, quando o Legislativo francês, em sessão conjunta de senadores e deputados, aprovou por maioria esmagadora – 780 votos favoráveis e apenas 72 contrários – uma alteração da Constituição do país para incluir nela “a liberdade das mulheres de recorrer ao aborto, que é garantido”. A medida é inédita em todo o mundo, e é preciso prestar muita atenção no que ela representa. Não se trata de uma legalização ou descriminalização, para a qual bastaria eliminar as menções ao aborto nos códigos penais; o que a França acaba de fazer é elevar o aborto ao status de direito constitucional, assim como o direito de ir e vir, o direito à liberdade de expressão e outras garantias características de uma democracia. Em outras palavras, trata-se da consagração do direito de matar – não um agressor injusto, como na doutrina clássica da legítima defesa, mas um ser humano completamente indefeso e inocente, alojado no próprio ventre.
Entender como se chegou a esse ponto é importante. O abortismo se insere em um quadro mais amplo, de perda de referências morais e abandono de valores que por séculos foram caros à sociedade, tendo sido a base da civilização ocidental. A relativização da dignidade da pessoa humana e a negação do direito inalienável à vida são componentes cruciais deste processo, e o mesmo roteiro que culminou com a decisão do parlamento francês está sendo aplicado em diversas outras partes do mundo, inclusive no Brasil, com maior ou menor velocidade. Não podemos descartar que a onda criada na França acabe chegando a outros países, assim como se avaliou, quando a Suprema Corte norte-americana derrubou Roe v Wade, que as repercussões daquele julgamento seriam mundiais, impulsionando a defesa da vida fora dos Estados Unidos. E a principal ferramenta para se chegar aonde os franceses chegaram é a desumanização do nascituro.
É pura barbárie retirar de um ser humano, independentemente de sua idade gestacional, sua dignidade intrínseca e cristalizar na lei maior de um país a possibilidade de seu extermínio como um direito
Para isso, evidentemente, é preciso empurrar para baixo do tapete um dado científico inegável: que, a partir do momento do encontro dos gametas masculino e feminino, estamos diante de um indivíduo da espécie humana (de que outra espécie poderia ser?); dono de um genoma único, diferente dos genomas paterno e materno – ou seja, não uma “parte do corpo da mãe”; e indubitavelmente vivo (do contrário, não se desenvolveria); ou seja, vida humana, desde seu primeiro momento, como atesta qualquer manual de Embriologia usado nas faculdades de Medicina mundo afora. O que o abortismo faz é negar ou ao menos diminuir esse status. Um dos meios para isso consiste em estabelecer momentos do desenvolvimento embrionário ou fetal (como, por exemplo, a formação do sistema nervoso) para só então reconhecer vida humana, e ignorar deliberadamente as questões incômodas postas pela adoção desse tipo de limiar arbitrário, já que é impossível afirmar com plena honestidade intelectual que um embrião ou feto não seria humano antes desse estágio do seu desenvolvimento. Trata-se de um autêntico negacionismo científico.
E, se a tentativa de estabelecer parâmetros “científicos” falhar, entram em cena outras falácias desumanizadoras, como estabelecer uma distinção filosófica entre “vida humana” e “pessoa humana”, admitindo-se que o embrião ou o feto são de fato vida humana, mas que por algum motivo – sempre arbitrário – não seriam pessoas, e por isso deveriam ser menos dignos de proteção, ou até mesmo nada dignos de proteção. Para isso, no entanto, é preciso esconder um fato que a boa antropologia filosófica atesta: que o nascituro nunca é um algo, mas um alguém, um ser humano desde seu primeiro momento. É por isso que bioeticistas comprometidos com a cultura da morte recorrem, em uma tentativa final de desumanização do embrião ou do feto, a conceitos como o de “senso da própria existência”, para usar as palavras do australiano Peter Singer ao defender uma ideia ainda mais macabra: a de que “matar um recém-nascido nunca é equivalente a matar uma pessoa”.
Com o embrião ou feto devidamente privado do reconhecimento de sua humanidade e sua dignidade intrínseca, as portas estão abertas para o vale-tudo. Assim, o aborto pode deixar de ser reconhecido como um mal que é preciso tolerar, seja lá por que razões, para se tornar coisa mais corriqueira: uma afirmação jubilosa – e as celebrações na França, como também já havia ocorrido na Irlanda ou na Argentina quando da legalização naqueles países, bem o demonstram – da autonomia da mulher, que passa a ser o único critério válido. É como se exprime, por exemplo, o atual presidente do STF, Luís Roberto Barroso, que em 2018 respondia à ativista pró-vida (e hoje deputada federal) Chris Tonietto nos seguintes termos: “Admitindo que haja vida – e, portanto, trabalhando sobre a sua premissa –, se você se mover, como eu me movo, por uma ética kantiana, e se a sua vida depende do sacrifício da minha liberdade individual, e eu não quero sacrificar minha liberdade individual, você perde” – no caso, perde a vida, que fique bem claro.
Dias atrás, tratamos como “barbárie” a postura de optar pela eliminação deliberada de um bebê que já chegou a um estágio de desenvolvimento que lhe permitiria alguma chance de sobrevivência fora do útero. Mas é igualmente bárbaro retirar de um ser humano, independentemente de sua idade gestacional, sua dignidade intrínseca e cristalizar na lei maior de um país a possibilidade de seu extermínio como um direito. Não há verniz de civilização ou prosperidade material que sejam capazes de esconder o apodrecimento moral de uma sociedade que trata dessa forma os mais indefesos e inocentes entre os seres humanos.
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