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A facilidade para ter acesso ao abortos com alegação de ter sido vítima de violência sexual pode dar brechas para a realização da prática em gestações de relações consentidas.
Imagem ilustrativa.| Foto: Andre Borges/Agência Brasília

Numa decisão corajosa, publicada no início de abril, o Conselho Federal de Medicina (CFM) aprovou uma resolução proibindo que os médicos realizem a assistolia fetal (feticídio) antes da interrupção da gravidez nos procedimentos de aborto previsto em lei, como no caso de gravidez originada de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas. Mas essa resolução – muito acertada – acabou sendo alvo do Judiciário pouco tempo depois de ser publicada.

Uma decisão da Justiça Federal de Porto Alegre (RS), com base em uma ação protocolada pelo Ministério Público Federal (MPF), pela Sociedade Brasileira de Bioética e pelo Centro Brasileiro de Estudos da Saúde, suspendeu a resolução do CFM, sob o argumento de que a norma seria contrária ao Código Penal, já que a legislação não impõe qualquer limite de tempo gestacional para a realização de "aborto legal". Segundo a decisão, não caberia ao CFM “criar restrição ao aborto em caso de estupro".

Uma interpretação literal – e equivocada – do Código Penal não pode ser usada para legalizar o homicídio de bebês que poderiam ter o parto antecipado.

Trata-se do mesmo argumento que embasava uma nota técnica do Ministério da Saúde, divulgada em fevereiro e felizmente suspensa logo depois. Na nota, o MS orientava que a assistolia fetal, normalmente realizada através de injeções no coração do feto até levá-lo à morte, fosse aplicada em todos os casos de interrupção de gravidez, independentemente da idade gestacional, mesmo se a criança estivesse a poucos dias de nascer.

A bestialidade da norma do MS era tão evidente que a pressão pública levou à sua suspensão no dia seguinte. Mas, como se vê pela decisão do Judiciário de Porto Alegre, ainda há quem esteja disposto a defender tal brutalidade. O fato de não haver um limite legal para a interrupção da gravidez nos casos de aborto sem punição (gravidez resultante de estupro e risco de vida para a mãe, conforme previsto no Código Penal, e em caso de feto anencéfalo, autorizado pelo STF em 2012), não significa, necessariamente, que seja preciso assassinar previamente as crianças que poderiam sobreviver fora do corpo da mãe.

Essa distinção importante existia na orientação anterior do MS, elaborada no governo Bolsonaro, e suspensa nos primeiros dias do governo Lula, e que determinava que, quando o feto tivesse mais de 22 semanas de gestação e apresentasse condições de viver fora do útero materno, seria preciso fazer a antecipação do parto com a oferta de todos os cuidados médicos disponíveis para buscar a sobrevivência do bebê. Se ele sobrevivesse, poderia ser encaminhado para adoção.

A resolução do CFM, arbitrariamente suspensa pela Justiça, não impede que a interrupção da gravidez seja feita a qualquer momento da gestação. Ela apenas impede a barbárie de se assassinar um bebê já formado e capaz de viver fora do corpo da mãe. Como lembrou o jurista Ives Gandra da Silva Martins, é absolutamente absurdo pensar que, seguindo a lógica da Justiça de Porto Alegre, poder-se-ia matar um bebê originado de um estupro pouco antes do momento do parto, mas se isso ocorresse um minuto após seu nascimento, seria considerado assassinato.

A viabilidade extrauterina a partir das 22 semanas de gestação é algo preconizado pelas faculdades de medicina e órgãos de saúde de todo o mundo, inclusive pela Organização Mundial de Saúde. A resolução do CFM não traz nenhuma inovação nesse sentido, só repete o que já é aplicado em todo o mundo, e proíbe que o médico, que deve ser um defensor da vida, se torne um assassino de uma vida indefesa, mas viável, de um bebê em gestação. Uma interpretação literal – e equivocada – do Código Penal não pode ser usada para legalizar o homicídio de bebês que poderiam ter o parto antecipado e uma vida inteira pela frente.

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