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Editorial

Aulas magnas, ideias nem tanto

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Alexandre de Moraes e Flavio Dino (na foto, em sessão do STF em novembro de 2024) proferiram aulas magnas em faculdades de Direito na cidade de São Paulo. (Foto: Rosinei Coutinho/STF)

Nesta semana, dois ministros do Supremo Tribunal Federal foram a São Paulo proferir aulas magnas, marcando o início do ano acadêmico nas faculdades de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E, falando aos futuros profissionais da área, Alexandre de Moraes e Flávio Dino desenharam muito bem o tipo de papel que eles desejam continuar exercendo no Brasil: o de um governo de facto, árbitro final de praticamente toda questão importante da vida nacional, e que não hesitará em recorrer ao cerceamento da liberdade de expressão quando julgar conveniente.

Falando no célebre Largo de São Francisco, Moraes – que também é professor da Faculdade de Direito da USP – partiu para o ataque contra as mídias sociais e contra os brasileiros que ousam publicar opiniões divergentes daquilo que o STF considera aceitável. As big techs, que até pouco tempo atrás eram exaltadas como grandes parceiras do Supremo e do Tribunal Superior Eleitoral (comandado por Moraes entre 2022 e 2024) quando colaboravam na supressão de discursos tidos como “inconvenientes”, tornaram-se a fonte de todo o mal. Elas foram, segundo Moraes, tomadas por “grupos econômicos fascistas para corroer a democracia por dentro”, e têm “algoritmos (...) direcionados ideologicamente para doutrinar as pessoas”. Por isso, obviamente, precisam de um cabresto – que, se não for colocado pelo Congresso, certamente o será pelo Supremo – para evitar que o “tio do churrasco” (foi a expressão usada por Moraes) continue dando suas opiniões por aí.

As palavras dos dois ministros resumem à perfeição o estado atual da cúpula do Judiciário brasileiro: uma corte que não tem limites

Esta última alusão, acompanhada de uma afirmação preconceituosa sobre “homens brancos, héteros, em torno de 45 anos para frente”, “uma faixa que chamamos no Brasil de classe média” que “começou a se sentir incomodada”, mostra o nível de sofisticação intelectual do arcabouço teórico que Moraes constrói para justificar a necessidade de censura – mais um pouco, e alguém haveria de perguntar quando o ministro diria que a classe média estava destilando ódio nas mídias sociais ao ver o pobre andar de avião... uma argumentação política, não jurídica, e completamente rasteira, que enxerga “fascismo” em tudo aquilo de que se discorda, para poder negar carta de cidadania a uma série de ideias e questionamentos legítimos.

No mesmo dia 24, Flávio Dino estava na PUC-SP dizendo que a hipertrofia – termo que ele não usou, evidentemente, mas que descreve perfeitamente seu raciocínio – do Supremo “veio para ficar”, na forma de um “protagonismo” que se tornou “uma marca do nosso tempo”. O mais novo ministro do STF afirmou que “nós estamos vendo as dificuldades próprias do mundo da política. Se a política não consegue resolver os problemas, isto vai para algum lugar. O Supremo, ao meu ver, independentemente da coragem ou da opção teórica de cada julgador, está, entre aspas, condenado a arbitrar temas políticos, econômicos e sociais”.

Não é verdade, no entanto, que “a política não consegue resolver os problemas”. A política tem suas dinâmicas: projetos de governo são escolhidos no voto popular, e leis são aprovadas por maioria parlamentar. O que ocorre é que os descontentes com a escolha do eleitor ou com o fato de não terem apoio para suas plataformas no Legislativo correm ao STF para um “terceiro turno”, que a corte se dispõe a promover com gosto, usando a alegação do “controle de constitucionalidade” para reescrever ou derrubar leis que em nada contrariam a Carta Magna. Dino até fez um gracejo, dizendo que “você nunca viu ministros da suprema corte correndo na Praça dos Três Poderes atrás de um processo, dizendo: ‘Ei, entra aqui com a petição’. Não. Normalmente é o contrário: a gente corre e a petição vem atrás da gente”. Mas isso pouco importa, pois, uma vez feita a petição, a corte agarra a chance de legislar quando deveria se abster de fazê-lo.

Dino nada mais faz, é verdade, que repetir o discurso do presidente do tribunal, Luís Roberto Barroso, entusiasta do ativismo judicial. E assim a corte vai se distanciando cada vez mais do ideal pregado por outro membro do STF, Luiz Fux, que falou em “protagonismo deletério” quando tomou posse na presidência da corte, em 2020. “O Supremo Tribunal Federal não detém o monopólio das respostas – nem é o legítimo oráculo – para todos os dilemas morais, políticos e econômicos de uma nação”, disse ele à época, reclamando que cotidianamente o Judiciário era “instado a decidir questões para as quais não dispõe de capacidade institucional”, provocado por “grupos de poder que não desejam arcar com as consequências de suas próprias decisões [e] acabam por permitir a transferência voluntária e prematura de conflitos de natureza política para o Poder Judiciário, instando os juízes a plasmarem provimentos judiciais sobre temas que demandam debate em outras arenas”. Isso, dizia Fux, acabava “corroendo a credibilidade dos tribunais quando decidem questões permeadas por desacordos morais que deveriam ter sido decididas no parlamento”.

As palavras dos dois ministros resumem à perfeição o estado atual da cúpula do Judiciário brasileiro: uma corte que não tem limites, cujos membros assumiram de vez um “papel iluminista” que exige deles serem “editores de um país inteiro”, exercendo um “poder moderador” – todas essas expressões de fato ditas ou escritas por membros do STF. Magistrados aos quais as leis que regem a magistratura não se aplicam; que falam livremente fora dos autos, sobre assuntos que podem vir a julgar, e até antecipando votos, como acabam de fazer Gilmar Mendes e Barroso a respeito da denúncia contra Jair Bolsonaro. As aulas são magnas, o conceito que os ministros fazem de si mesmos é extremamente magno, mas as ideias estão muito longe disso.

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