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Em nenhum outro lugar do mundo o bate-boca ocorrido no Salão Oval da Casa Branca, nesta sexta-feira, foi tão comemorado quanto em Moscou. A discussão entre o presidente norte-americano, Donald Trump; o vice-presidente J.D. Vance; e o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, azedou completamente as relações entre os dois países e pode privar os ucranianos de uma ajuda da qual eles precisam desesperadamente e cuja ausência a Europa, por mais comprometida que esteja com a defesa da Ucrânia contra o imperialismo expansionista de Vladimir Putin, não será capaz de compensar.
Havia a perspectiva, na sexta-feira, de que a Ucrânia e os Estados Unidos assinassem um acordo sobre um fundo de investimento bilateral, no qual a parte ucraniana viria da exploração das chamadas “terras raras”, embora ainda houvesse muitas dúvidas sobre que tipo de garantias os EUA ofereceriam para garantir a segurança ucraniana. Em vez disso, o que se viu foi um espetáculo deprimente. Vance acusou Zelensky de querer passar um sermão nos norte-americanos em pleno Salão Oval, diante de toda a imprensa, ao mesmo tempo em que ele e Trump se alternaram fazendo exatamente o mesmo, humilhando Zelensky diante das câmeras e exigindo que ele fosse “mais agradecido” pela ajuda norte-americana – ajuda essa que foi quase toda proporcionada durante o governo democrata de Joe Biden, e que os republicanos tentaram atrapalhar em pelo menos uma ocasião.
Afirmar que Zelensky não quer paz, no entanto, é um enorme erro; paz é o que os ucranianos mais querem, desde que seja uma paz duradoura, com garantias de proteção futura contra qualquer nova agressão
Que Zelensky estava na posição mais frágil é evidente. Que, exatamente por causa disso, o ucraniano poderia ter se contido, limitando-se aos salamaleques protocolares e guardando a indignação para si, é algo que teria sido útil. Mas não há como culpar Zelensky por reagir à afirmação de Vance segundo a qual “o que faz da América um grande país é que nos empenhamos em diplomacia. É o que o presidente Trump está fazendo”. Quando o ucraniano pergunta “que diplomacia?”, ele sabe do que fala, pois Putin desrespeitou vários acordos anteriores. Além disso, Zelensky viu os Estados Unidos negociando em alto nível com a agressora Rússia, e leu o que Trump escreveu sobre ele, chamando-o de “ditador sem eleições” (algo que Trump tentou negar na quinta-feira) e responsabilizando-o pela invasão russa. Isso certamente não é diplomacia, como também não o é chamar de “passeios de propaganda” as visitas de outros líderes à Ucrânia, como fez Vance – que há muito tempo critica o apoio norte-americano a Kyiv.
A parte da reunião que deveria ocorrer a portas fechadas provavelmente não ocorreu; a entrevista coletiva dos dois presidentes foi cancelada; o acordo envolvendo os minerais raros não foi assinado; e Trump foi às mídias sociais cantar vitória. “O presidente Zelensky não está pronto para a paz se os EUA estiverem envolvidos, porque ele sente que nosso envolvimento lhe dá uma grande vantagem nas negociações. (...) Ele pode voltar quando estiver pronto para a paz”, escreveu o norte-americano. Afirmar que Zelensky não quer paz, no entanto, é um enorme erro; paz é o que os ucranianos mais querem, desde que seja uma paz duradoura, com garantias de proteção futura contra qualquer nova agressão. Qualquer desfecho diferente não é paz, mas um simples cessar-fogo que permitirá à Rússia recuperar o fôlego para retomar a guerra, ou, pior ainda, uma rendição.
Logo após o bate-boca, líderes europeus correram para as mídias sociais prestar solidariedade a Zelensky. Mas publicações on-line não ganham guerras, e pelo menos 40% da ajuda estrangeira à Ucrânia vem dos Estados Unidos – incluindo algumas tecnologias que apenas os norte-americanos possuem. Sem isso, e sem a entrada na Otan, mais uma vez rechaçada por Trump, a Ucrânia se torna presa mais fácil para Putin. Vance e Trump acusam Zelensky de “jogar com a Terceira Guerra Mundial”, mas o roteiro que levou à Segunda Guerra Mundial incluiu a entrega de bandeja, pelo Ocidente democrático, de territórios alheios a uma potência totalitária e imperialista. E não é Zelensky quem está fazendo isso agora, mas aquele para quem o que importa, no fim das contas, é que a discussão do Salão Oval foi “ótima para a televisão”.