Quem pensava que o Supremo Tribunal Federal poderia ter mais parcimônia em 2025 ao aplicar a censura, enganou-se. Janeiro nem terminou, mas a corte já está ativa: o tribunal determinou que os perfis no X, Instagram e YouTube da Revista Timeline, lançada em setembro do ano passado pelos jornalistas Luís Ernesto Lacombe e Allan dos Santos, fossem suspensos. Apenas o site da revista continua no ar, ao menos por enquanto.
Não há como usar outro termo para se referir a esse caso senão censura, a mesma que tem sido aplicada fartamente pelo STF nos últimos anos, na contramão do que diz o ordenamento jurídico brasileiro e a Constituição, que proíbe expressamente a censura prévia. Agora, porém, em vez de impor a mordaça a uma conta pessoal, como tem sido a prática recorrente do tribunal, a corte escolhe bloquear as redes sociais de uma revista.
A sociedade brasileira – o povo, os políticos, a imprensa – não pode continuar catatônica, incapaz de perceber os perigos da normalização da censura e do cerceamento das liberdades. É preciso acordar o quanto antes desse pesadelo
Como em outros casos de censura aplicados pela corte, não há informações sobre o motivo exato das suspensões das contas da Timeline nas redes sociais. Ao justificar o bloqueio no X, a rede social informou na segunda-feira (27) que apenas segue as "obrigações aplicáveis aos provedores de aplicação de internet nos termos da Lei 12.965/2014" e que a suspensão da conta seria “objeto de ordem de bloqueio integral proferida no âmbito de um processo em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal" e que não poderia fornecer mais detalhes. No dia seguinte, o Instagram e o YouTube também derrubaram as contas da Revista Timeline.
Segundo Lacombe, que também é colunista na Gazeta do Povo, a notificação de bloqueio no YouTube chegou no momento em que os jornalistas apresentavam ao vivo o programa “Conversa Timeline”. "Gostaríamos de informar que recebemos uma reclamação legal sobre sua conta do YouTube. Após análise, seu canal foi bloqueado no (s) site (s) do (s) país (es) listado (s) abaixo: Brasil", dizia o comunicado da rede social. Não houve qualquer informação sobre qual seria a “reclamação legal” que levou ao bloqueio. A Timeline também não recebeu nenhuma notificação do STF ou qualquer outra instância judicial que pudesse esclarecer os motivos da suspensão.
Mesmo que as lacônicas informações das redes sociais informem apenas que o bloqueio seguiu “uma determinação judicial”, sem mais detalhes, ao que tudo indica, a suspensão pode estar relacionada aos abusivos e intermináveis inquéritos das fake news e das “milícias digitais”, sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, e que citam Allan dos Santos.
Desde a abertura das investigações, o jornalista foi alvo de diversas decisões do tribunal, inclusive um pedido de prisão preventiva, só não cumprido porque Allan dos Santos se refugiou nos Estados Unidos, onde vive atualmente. A corte também foi responsável pelo bloqueio e fim do programa do YouTube comandado por Santos, o Terça Livre, encerrando as contas nas redes sociais e bancárias vinculadas ao jornalista e ao programa em 2021. Na semana passada, Allan dos Santos foi visto na festa que celebrou a posse do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, no dia 20 de janeiro. Uma semana depois, as redes sociais da revista criada por Allan dos Santos são censuradas.
O empenho da corte superior brasileira em calar Allan dos Santos é tamanha que, em 2023, o tribunal chegou a punir o influenciador e YouTuber Bruno Monteiro Aiub, o Monark – outro alvo recorrente das decisões abusivas do STF – apenas por ter entrevistado Santos. Por isso, não surpreenderia que agora, sem poder bloquear de novo as redes sociais pessoais de Allan dos Santos, uma vez que já o fez, o STF tenha apostado na censura à Revista Timeline, criada nos Estados Unidos justamente para tentar escapar ao cerceamento da liberdade de expressão no Brasil.
Em setembro do ano passado, durante o lançamento da publicação online, os criadores da revista disseram que buscavam proteção na Primeira Emenda americana, que garante a liberdade de expressão nos EUA, para concretizar o projeto voltado ao público brasileiro. Ainda assim, os jornalistas sabiam que poderiam ser alvo de censura – como de fato aconteceu. "Mesmo com os três idealizadores do projeto fora do Brasil, a ameaça de censura existe", comentou na época Ernesto Lacombe, profetizando o que se materializaria meses depois.
Seja ou não Allan dos Santos o alvo do STF, o caso mostra, mais uma vez, que o tribunal há muito perdeu qualquer freio na hora de aplicar a censura às redes sociais. Os textos legais que deveriam basear todas as decisões da corte foram colocados de lado para dar lugar a errôneas interpretações, que subvertem as garantias legais indispensáveis para o exercício do Judiciário e corroem garantias fundamentais, como a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa.
A Constituição Nacional, o mesmo texto que deveria orientar qualquer decisão do STF e de seus ministros, não deixa dúvida sobre a proteção à atividade da imprensa. O artigo 220 do documento determina que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição”. Com o bloqueio às redes sociais da Revista Timeline, o STF está fazendo justamente isso: limitando o acesso e a divulgação dos conteúdos da publicação, que não se restringem às manifestações ou falas de Allan dos Santos. Mas como esperar outra coisa senão censura do STF, a mesma corte que violou a liberdade de expressão de milhões de brasileiros ao bloquear toda a rede social X no país, no período que antecedeu as eleições municipais do ano passado?
Ainda que alguma postagem ou matéria da Timeline pudesse ser alvo de contestação judicial – e isso pode ser feito de acordo com a legislação vigente – a censura prévia ao veículo pela suspensão de suas contas nas redes sociais não poderia ocorrer. Todo um caminho jurídico precisaria ser percorrido, garantindo o direito à legítima defesa, e aos recursos cabíveis para só então ser emitida uma decisão definitiva para a derrubada da postagem.
Se o alvo é Allan dos Santos, igualmente, seria necessário apontar qual crime foi cometido e direcionar as ações cabíveis a ele, não penalizar toda a publicação – e os leitores dela. Nem mesmo durante o período da ditadura militar, entre 1964 e 1985, o regime foi tão longe. Não cabe ao STF decidir quais revistas – jornais, redes de rádio ou qualquer outro veículo de comunicação – podem ou não divulgar seu conteúdo nas redes sociais.
Além da censura em si, aberração que, infelizmente, parece sorrateiramente normalizada pela mais alta corte brasileira, um precedente perigosíssimo se esconde na decisão de bloquear as redes sociais da Revista Timeline: o de que o STF pode, a qualquer momento, derrubar as contas nas redes sociais de um veículo inteiro de comunicação, sem apresentar justificativas, nem apontar quais crimes foram cometidos, sem direito à defesa ou ao contraditório. Ou, ainda, que os veículos de comunicação não podem ter entre seus colaboradores ou criadores de conteúdo qualquer um que esteja na mira do STF, sem correr o risco de receberem também um alvo nas costas.
A cada avanço da censura – seja direta ou disfarçada de regulamentação – é o Brasil que se afasta de uma democracia plena, aproximando-se perigosamente das distopias orwellianas. A sociedade brasileira – o povo, os políticos, a imprensa – não pode continuar catatônica, incapaz de perceber os perigos da normalização da censura e do cerceamento das liberdades. É preciso acordar o quanto antes desse pesadelo.