Um dos principais marcos – se não o principal – do processo de destruição da liberdade de expressão no Brasil completou cinco anos nesta quinta-feira. Em 14 de março de 2019, o então presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, abria “de ofício” (ou seja, sem provocação do Ministério Público) o Inquérito 4.781, conhecido como “inquérito das fake news” ou, mais adequadamente, “inquérito do fim do mundo”, como o apelidou o então ministro do STF Marco Aurélio Mello. Seu objetivo oficial era o de investigar “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi e injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”, mas até as paredes da sede da suprema corte sabem que, no fim, ele se prestou a muito mais que isso: serviu e tem servido para coibir críticas ao tribunal e qualquer discurso que a corte considere “de ódio” ou “antidemocrático”, mesmo quando se trata do legítimo exercício do direito de opinião.
O inquérito já nascia totalmente viciado: o artigo 43 do Regimento Interno do STF permite a abertura de inquérito por iniciativa própria apenas se a “infração à lei penal” tiver ocorrido na “sede ou dependência do Tribunal”, o que evidentemente não era o caso – na prática, Toffoli transformara todo o território nacional em “sede ou dependência” do STF. O então presidente do Supremo ainda dispensou o sorteio para atribuição da relatoria, entregando a tarefa diretamente a Alexandre de Moraes. O vício de origem processual, no entanto, está quase esquecido, tantos foram os excessos cometidos nestes cinco anos e que superaram em muito os equívocos processuais de Toffoli que fizeram do STF e seus ministros acumularem os papéis de vítima, investigador, acusador e juiz.
Nestes cinco anos, a lei foi ignorada por quem mais deveria estar empenhado em garantir seu cumprimento, e a democracia foi solapada pelos mesmos que juram estar defendendo-a
Não demorou nada para o Inquérito 4.781, quaisquer que fossem as intenções de seus mentores, se transformar em ferramenta de ataque às liberdades democráticas. Um mês depois da abertura do inquérito, a liberdade de imprensa tornava-se sua primeira vítima, com a censura imposta à revista Crusoé e ao site O Antagonista, que publicaram informação da delação premiada de Marcelo Odebrecht na qual Toffoli era citado como o “amigo do amigo de meu pai”. A informação tinha interesse público, era verdadeira – o empreiteiro realmente afirmara isso – e não atribuía nenhum crime ao ministro, que fora advogado-geral da União antes de ser nomeado por Lula ao STF, em 2009. Mas nada disso impediu que Moraes ordenasse a remoção das matérias.
A censura foi revogada três dias depois, diante da enorme repercussão negativa, mas a porteira do ataque às liberdades estava aberta. Jornalistas, políticos, influenciadores, empresários: qualquer um que levantasse a voz de forma mais enfática contra o STF por qualquer motivo – desde a condução abusiva do próprio inquérito das fake news até outras decisões, como o desmonte da Operação Lava Jato –, que manifestasse opiniões destoantes de determinados consensos ou que ousasse questionar os tabus criados pela corte podia receber a visita da Polícia Federal, ter seus perfis em mídias sociais bloqueados ou desmonetizados, ou ter sigilos quebrados, contas bancárias bloqueadas e passaportes suspensos. Nem a imunidade parlamentar constitucionalmente garantida a deputados e senadores escapou ilesa.
O Inquérito 4.781 ganhou “filhotes”, como o inquérito dos “atos antidemocráticos” (4.828), depois arquivado para dar lugar ao das “milícias digitais” (4.874), consolidando o arcabouço destinado a coibir qualquer discurso que o STF considerasse ofensivo ou antidemocrático. No segundo semestre de 2022, o Estado policial instaurado pelos inquéritos passou até a perseguir não só quem fizesse afirmações públicas, mas também os que manifestavam seu desagrado de forma privada, como ocorreu com um grupo de empresários investigado por uma conversa em grupo de WhatsApp tornada pública por um jornalista. Foi preciso que transcorresse um ano inteiro para Moraes perceber que os empresários “não passaram dos limites de manifestação interna no referido grupo, sem a exteriorização capaz de causar influência em terceiros como formadores de opinião”. Por fim, o próprio escopo original dos inquéritos – por si só vastíssimo – já se perdeu, a ponto de terem servido até para apurar uma suposta fraude nos registros de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro e para intimidar as big techs que se opuseram ao PL 2.630/20, em tramitação no Congresso. Hoje, os inquéritos 4.781 e 4.874 servem para investigar tudo o que Moraes e o STF quiserem investigar.
Liberdades de expressão e imprensa violadas, perseguição por “crimes de opinião” e até “crimes de cogitação”, juízos universais que ignoram as normas legais, acúmulo de funções em uma única pessoa ou instituição, órgãos essenciais para o processo criminal escanteados. Este é o saldo, até agora, do inquérito das fake news e de seus derivados, e continua a nos causar surpresa perceber que muitos ainda os considerem como algo bom ou até necessário, mas que apenas se desviou do “bom caminho” ao longo do tempo – sem falar naqueles que ainda julgam não haver nada de errado nos inquéritos e na forma como são conduzidos. A lei foi ignorada por quem mais deveria estar empenhado em garantir seu cumprimento, e a democracia foi solapada pelos mesmos que juram estar defendendo-a, mas que no fim só conseguiram a transformação do Judiciário em um superpoder acima de todos, acima até mesmo da Constituição. Não havia nada de bom que poderia ter saído disso, e os últimos cinco anos o comprovam.
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