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Editorial

Condenação da Jovem Pan é abuso que não pode ser normalizado

Justiça condena Jovem Pan a pagar mais de R$ 1 milhão em “danos morais”, mas mantém outorgas
Decisão da Justiça Federal manteve outorgas da Jovem Pan, mas impôs multa por "desinformação". (Foto: Jovem Pan/Divulgação)

Quando as principais cortes do país abolem a liberdade de expressão, promovendo censura prévia e instituindo listas de temas que não podem ser discutidos ou “consensos” que não podem ser questionados, não demora para que as instâncias inferiores sigam o exemplo, respaldadas na jurisprudência dos tribunais superiores. Foi assim que a juíza Denise Avelar, da 6.ª Vara Cível Federal de São Paulo, impôs uma multa de quase R$ 1,6 milhão à Jovem Pan por “promover desinformação de forma sistemática e veicular conteúdos que colocaram em risco o regime democrático brasileiro”, segundo a acusação do Ministério Público Federal. O MPF havia pedido que as concessões da Jovem Pan fossem cassadas e que a multa fosse de R$ 13,4 milhões, solicitações negadas pela magistrada. Mas que a Jovem Pan siga funcionando é algo que não serve nem como prêmio de consolação, pois o caso todo mostra o estado atual das liberdades democráticas no Brasil.

O que levou o MPF a solicitar algo tão típico de ditaduras, como a cassação de concessões de radiodifusão? Uma “campanha de desacreditar as instituições nacionais” (leia-se críticas às instituições) e “desinformação sistemática” sobre um dos temas-tabu preferidos dos censores, o sistema eletrônico de votação e apuração. O fato de nenhum desses termos estar devidamente tipificado como ato ilícito na legislação brasileira já deixou de ser um empecilho há muito tempo – em alguns casos, porque resoluções do Tribunal Superior Eleitoral se encarregaram do trabalho de substituir o legislador, tratando como crimes o que os representantes do povo jamais quiseram definir como tais.

Uma decisão absurda contra um veículo de comunicação tradicional deveria estar sendo recebida com repúdio veemente de toda a imprensa. Mas não isso o que está acontecendo

O que temos, portanto, é a transformação do jornalismo opinativo em ilícito, como afirmou à Gazeta do Povo Katia Magalhães, advogada especialista em responsabilidade civil. E, a julgar pelos argumentos da juíza Denise Avelar, veículos de comunicação e programas específicos estariam impedidos até mesmo de ter uma linha editorial, com posição definida sobre certos temas ou inclinação político-partidária – ou talvez fosse melhor dizer que não podem ter uma certa linha editorial, ou uma certa opinião sobre uma certa lista de assuntos. Em uma ironia cruel e antidemocrática, argumenta-se que a Jovem Pan impede o debate para, então, verdadeiramente impedir o debate tirando a emissora do jogo – recorde-se que, após o início da ofensiva judicial contra a emissora, com ameaças de cancelamento da concessão, ela partiu para a autocensura, refazendo seu quadro de comentaristas para evitar novas manifestações que destoassem do discurso oficialmente permitido.

O caso da Jovem Pan ainda é emblemático porque, além do avanço antidemocrático sobre a liberdade de expressão, ele também é um exemplo de criatividade processual – outra especialidade recente de ministros de tribunais superiores, que inventam medidas cautelares e punições inexistentes na legislação. No caso, trata-se do uso indevido do conceito de “dano moral coletivo”, que serve para a reparação de atos que ferem toda uma coletividade – o exemplo dado por Magalhães é o de um desastre ambiental causado por negligência de uma empresa. Mesmo em um entendimento mais amplo, que admita o dano moral coletivo no caso de lesão a valores de um grupo social, não haveria como encaixar neste conceito os comentários feitos na Jovem Pan – a não ser, claro, que agora a blindagem de autoridades contra críticas seja um pilar da sociedade brasileira. Considerando que até entreveros com ministros do Supremo em aeroportos estrangeiros têm sido tratados como “ataques à democracia”, talvez seja exatamente isso que pretendem os juízes responsáveis por decisões como a que afeta a Jovem Pan.

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Uma decisão tão absurda quanto esta, contra um veículo de comunicação tradicional, deveria estar sendo recebida com repúdio veemente de toda a imprensa. No entanto, não é o que temos visto nos dias que se seguiram à condenação. Nenhuma explicação possível para este silêncio é boa. O possível medo de ser o próximo alvo da perseguição já seria um sintoma agudo de que a liberdade de expressão no país está em estado terminal. O mais provável, no entanto, é que estejamos vivendo uma normalização do abuso por parte dos formadores de opinião e da sociedade civil; decisões que crescem em número e intensidade, contra aqueles de quem se discorda, não são criticadas – pelo contrário, são ignoradas ou justificadas como “defesa da democracia”. Mas quem normaliza esse tipo de agressão à liberdade de expressão se torna cúmplice do estado de exceção que substitui a verdadeira democracia.

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