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Editorial

As ambições territoriais de Donald Trump

Donald Trump Groenlândia Panamá
O presidente eleito dos EUA, Donald Trump, durante reunião no Capitólio em 9 de janeiro. (Foto: Will Oliver/EFE)

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A agressão russa contra a Ucrânia está prestes a completar três anos, a guerra de Israel contra o Hamas e o Hezbollah segue em curso, o Sudão vive uma guerra civil com catástrofe humanitária, e a Síria ainda vive incertezas quanto ao seu futuro. Mas, para o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, há locais do globo mais merecedores de sua atenção: a Groenlândia e o Panamá. A maior ilha do mundo, localizada na região ártica e pertencente à Dinamarca, tem sido alvo de ofertas financeiras norte-americanas desde o século 19 (uma delas foi feita durante o primeiro mandato de Trump) por motivos de segurança: ela faz parte do caminho mais curto entre os Estados Unidos e a Rússia. Já o país centro-americano controla desde 1999 o canal que liga os oceanos Atlântico e Pacífico, exercendo papel vital na navegação mundial.

Que as atenções geopolíticas de Trump estejam voltadas para áreas pacíficas do continente americano enquanto outras regiões queimam – envolvendo inclusive um dos principais aliados dos Estados Unidos – seria apenas um sinal de prioridades mal colocadas, se não fosse por um detalhe fundamental. Durante entrevista recente na Flórida, o presidente eleito afirmou que não descarta recorrer ao uso da força para tirar a Groenlândia dos dinamarqueses e para retomar o Canal do Panamá, construído pelos EUA, inaugurado em 1914 e administrado pelos norte-americanos até 31 de dezembro de 1999, quando o controle passou aos panamenhos, de acordo com um tratado assinado em 1977 pelo então presidente Jimmy Carter e que Trump disse considerar um grande erro. Após expor seu interesse nas duas regiões, um jornalista questionou se Trump descartaria o uso de pressão econômica ou ação militar; o republicano respondeu que “não posso garantir nada em relação a nenhum dos dois”. Sobrou até para o Canadá, que “deveria ser um [estado] norte-americano”, segundo Trump.

O fato de Trump não rejeitar a solução militar para se apossar da Groenlândia e do Canal do Panamá é música para os ouvidos da Rússia e da China, pois significa que o norte-americano considera válido o uso da força com propósitos expansionistas

Se Trump realmente quer a Groenlândia e o Canal do Panamá (e a importância estratégica de ambos é inegável), que faça uma oferta tentadora e aguarde uma resposta livre dos respectivos governos ou habitantes – que, no caso groenlandês, têm se inclinado cada vez mais para a independência em relação à Dinamarca. A ilha ártica tem tantos recursos naturais, como petróleo e minerais raros, que os Estados Unidos poderiam tornar multimilionários todos os 56,5 mil groenlandeses e ainda assim o negócio seria uma grande barganha. Como não houve nenhuma discussão sobre valores, não se sabe até que ponto as resistências já manifestadas no Panamá, na Dinamarca e na Groenlândia poderiam ser vencidas por um acordo vantajoso.

O presidente eleito tem em altíssima conta seus dotes de negociador, e pode ter deixado aberta a hipótese do uso da força apenas como ferramenta retórica: por esse raciocínio, ele não teria interesse real de mandar soldados a lugar nenhum, mas, se dinamarqueses, groenlandeses e panamenhos acreditarem que Trump, imprevisível como só ele, pode fazer isso, talvez ficariam mais propensos a negociar, ou a aceitar termos mais favoráveis aos Estados Unidos. Ainda assim, a escolha de palavras de Trump neste momento é, no mínimo, uma enorme irresponsabilidade com gravíssimas consequências geopolíticas.

Após décadas em que a comunidade internacional trabalhou ativamente contra o uso da força para resolver disputas territoriais – basta recordar o tamanho da coalizão internacional formada quanto o Iraque invadiu o Kuwait, em 1991 –, o mundo vê hoje o retorno do imperialismo agressivo. A Rússia capturou ilegalmente a Crimeia em 2014 e invadiu a Ucrânia em 2022. A China ignorou os termos do tratado pelo qual os britânicos devolveram Hong Kong em 1997, abolindo o princípio de “um país, dois sistemas” que deveria vigorar até 2047, e aguarda uma chance para invadir Taiwan. O homem que, em menos de duas semanas, se tornará comandante da maior máquina de guerra do mundo deveria ajudar a parar os valentões; em vez disso, os está incentivando.

Pouco importa, aqui, que no seu íntimo Trump tenha disposição zero em invadir o Panamá ou a Groenlândia. O simples fato de ele não rejeitar veementemente a solução militar é música para os ouvidos de Vladimir Putin e Xi Jinping, pois significa que o norte-americano considera válido o uso da força quando a causa o merecer – e os ditadores russo e chinês certamente creem que a “desnazificação da Ucrânia” e a “supressão da rebelião” em Taiwan cumprem o requisito. Pior ainda é o fato de a ameaça estar dirigida a um país que é, formalmente, um aliado militar dos Estados Unidos, já que a Dinamarca integra a Otan desde sua fundação, em 1949.

Se o blefe já tem potencial para desmoralizar o sistema internacional ao validar o imperialismo expansionista, nem seria necessário mencionar a catástrofe que ocorreria caso Trump esteja realmente disposto a invadir Panamá ou Groenlândia – seria a primeira guerra por expansão territorial norte-americana desde os conflitos do século 19 que levaram ao estabelecimento das atuais fronteiras dos Estados Unidos. O direito internacional receberia seu golpe de misericórdia, definitivamente substituído pela força bruta para a solução de qualquer controvérsia. Independentemente das reais intenções de Trump, suas palavras são gravíssimas e exigem repúdio, pois reforçam a tensão global em que valentões como Putin e Xi lançaram o mundo.

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