O ex-presidente norte-americano Donald Trump, que muito provavelmente será o candidato republicano à Casa Branca no fim deste ano, conseguiu uma vitória na Suprema Corte dos Estados Unidos, que lhe concedeu uma imunidade capaz de frear ou até anular os processos a que ele responde pela invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021. Naquela ocasião, uma multidão de apoiadores de Trump invadiu a sede do Legislativo federal norte-americano e interrompeu a sessão do Congresso que certificaria os resultados eleitorais de 2020, vencidas por Joe Biden. Duas pessoas morreram durante o ataque; algumas outras vieram a falecer nos dias seguintes.
A Constituição dos Estados Unidos prevê imunidade aos congressistas no artigo 1.º, mas não diz nada sobre o presidente do país; as regras sobre a imunidade presidencial foram sendo construídas à base de jurisprudências que datam da segunda metade do século 19 e foram sendo aprofundadas ao longo do século 20 – e, agora, com esta nova decisão da Suprema Corte, que pode ser sintetizado na seguinte frase, presente no Syllabus (uma espécie de “resumo” da decisão): “um ex-presidente tem direito à imunidade absoluta de processos penais por ações no âmbito da sua autoridade constitucional. Ele tem direito ao menos à imunidade presumida de processos por todos os seus atos oficiais. E não há imunidade para atos não oficiais”.
Em uma nação com forte tradição de respeito à separação de poderes, os justices quiseram evitar o perigo de interferências indevidas do Judiciário sobre o Executivo, o que eles classificaram no Syllabus como “ameaça”. Um gestor precisa ser livre para fazer seu trabalho – o que inclui tomar várias decisões impopulares, e que podem até mesmo se revelar desastrosas – sem medo de uma responsabilização civil ou criminal, nem durante, nem depois do mandato. Onde existe essa possibilidade – pensemos, por exemplo, no caso brasileiro, em que setores militantes do Ministério Público chegam até a impor políticas públicas de sua preferência –, há o risco do “apagão das canetas”, em que o Poder Executivo prefere não fazer nada a fazer algo que possa dar motivo a processos judiciais.
Um presidente pode muito bem realizar ações que sejam, ao mesmo tempo, oficiais e claramente criminosas ou inconstitucionais
No entanto, o que acabou acontecendo fez a balança pender para o lado diametralmente oposto. Com o critério de “oficialidade” estabelecido na decisão, a maioria formada por seis justices está blindando praticamente todo ato de um presidente (qualquer presidente, seja democrata ou republicano) que traga consigo uma assinatura, um selo, um carimbo ou qualquer outro atestado de seu caráter oficial. E é bastante óbvio que um presidente pode muito bem realizar ações que sejam, ao mesmo tempo, oficiais e claramente criminosas ou inconstitucionais – isso é ainda mais evidente para um brasileiro que tenha um mínimo de memória a respeito dos últimos 20 anos. Ou pensemos em como a administração Obama usou estruturas oficiais, como o equivalente americano da Receita Federal, para perseguir organizações conservadoras, inclusive grupos pró-vida.
“O presidente não está acima da lei”, afirma o justice John Roberts, encarregado de redigir a opinião da maioria, no fim do Syllabus. A frase é corretíssima, mas não corresponde ao que a decisão da Suprema Corte representa, pois a partir de agora o presidente pode desrespeitar a lei sem sofrer nenhuma consequência, nem durante, nem depois do mandato: basta que o faça “em caráter oficial” ou “no uso de suas atribuições legais”, para recordar a terminologia da burocracia brasileira. Quando a justice Sonia Sottomayor, redatora do voto divergente, escreve “ordens para uma equipe de fuzileiros assassinar um rival político? Imune. Organizar um golpe militar para permanecer no poder? Imune. Aceitar suborno em troca de um indulto? Imune”, ela não está usando uma falácia de plano inclinado; ela está mostrando o absurdo que surge quando se usa o “caráter oficial” de um ato presidencial como critério para definir se ele é ou não passível de responsabilização criminal.
O voto da maioria afirma que os Pais Fundadores da nação americana desenharam a presidência como um Poder Executivo “vigoroso” e “enérgico”. Mas jamais pensaram em um presidente impune, ou com carta branca para cometer crimes. Blindar qualquer atitude de um presidente simplesmente por ter caráter oficial equivale a ressuscitar o adágio “the king can do no wrong” (“o rei não pode errar”) que caracterizava as monarquias absolutistas – algo que os Pais Fundadores certamente abominavam.
No caso específico de Trump, há várias ações a que ele responde pelo 6 de janeiro. Elas tratam do discurso feito a apoiadores antes da invasão do Capitólio – que teria sido instigada pelas palavras do então presidente –, mas também de supostas tentativas, da parte de Trump, de influenciar autoridades como o vice-presidente Mike Pence e órgãos como o Departamento de Justiça para que endossassem a tese da fraude eleitoral. Os justices, de antemão, já afirmaram que há imunidade no caso do Departamento de Justiça, e deixaram para a corte distrital de Washington a tarefa de definir se o discurso de Trump em 6 de janeiro e suas interações com Pence e outras autoridades tenham sido atos oficiais ou não oficiais – uma discussão que retardará enormemente os processos, beneficiando Trump na corrida eleitoral.
Mesmo que o tribunal de Washington decida, mais cedo ou mais tarde, seguir adiante com os demais processos – por exemplo, se considerar que Trump falou a seus apoiadores não na qualidade de presidente, mas na de candidato derrotado –, o estabelecimento do critério único da “oficialidade” para definir se um presidente ou ex-presidente pode ser criminalmente processado abre um mundo de possibilidades ilícitas para qualquer futuro mandatário. A imunidade não existe, nem nos Estados Unidos nem em qualquer outro lugar, para que crimes cometidos por um presidente da República acabem impunes apenas por terem sido cometidos sob o manto da oficialidade. Com sua decisão, a Suprema Corte desvirtuou o instituto da imunidade, e com isso abriu precedentes bastante perigosos para aquela que, ainda hoje, é a democracia mais sólida do planeta.
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