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Ruth Bader Ginsburg (em foto de 2017), juíza da Suprema Corte norte-americana, faleceu em 18 de setembro, vítima de um câncer no pâncreas.
Ruth Bader Ginsburg (em foto de 2017), juíza da Suprema Corte norte-americana, faleceu em 18 de setembro, vítima de um câncer no pâncreas.| Foto: Nicholas Kamm/AFP

Desde o segundo mandato de Ronald Reagan, no fim dos anos 80 do século passado, um presidente norte-americano não tinha a chance de alterar radicalmente o perfil da Suprema Corte ao indicar três justices – como são chamados os seus nove membros – em um período de apenas quatro anos. Donald Trump pode ter essa oportunidade, após o falecimento, nesta sexta-feira, de Ruth Bader Ginsburg. A segunda mulher a integrar a Suprema Corte, mesmo tendo posições consideradas mais à esquerda, conquistou o respeito e a admiração de muitos conservadores, incluindo políticos e ícones da direita como seu colega de corte Antonin Scalia, com quem manteve uma profunda amizade. É uma nomeação fundamental para a composição da Suprema Corte, mas que exigirá a reversão de precedente estabelecido pelos senadores republicanos quatro anos atrás.

Em fevereiro de 2016, Scalia morreu repentinamente, no último ano do segundo mandato presidencial do democrata Barack Obama. Para suceder o justice, conhecido por suas posições mais conservadoras, Obama escolheu Merrick Garland, visto como moderado, e o anúncio foi feito em 16 de março daquele ano. Mesmo antes da confirmação do nome, no entanto, vários membros da maioria republicana no Senado já haviam declarado que bloqueariam qualquer indicação, argumentando que, por se tratar de ano eleitoral, seria melhor que o eleitorado americano pudesse ser ouvido quanto ao novo membro da Suprema Corte – ou seja, só o presidente que fosse eleito em novembro daquele ano e assumisse em 2017 poderia tomar tal decisão.

Apesar de toda a controvérsia sobre como será conduzida a nomeação pelo Senado, o mais importante é o nome do escolhido

Havia, evidentemente, a opção de simplesmente recusar Garland – e qualquer outra nomeação de Obama – no plenário, o que não é incomum na história norte-americana. Adiar indefinidamente o processo de escolha foi uma decisão política que ignorava uma série de aspectos, a começar pelo fato de Obama ter indicado Garland quando as primárias mal haviam começado. Além disso, o povo americano já tinha sido ouvido sobre quem deveria fazer qualquer indicação para a Suprema Corte entre 2013 e 2016: isso ocorreu em 6 de novembro de 2012, quando Obama foi reeleito para um mandato de quatro anos, e não menos que isso. Até o início de janeiro de 2017, era seu direito exercer todos os poderes e prerrogativas que a Constituição lhe garante, inclusive o de escolher membros para a Suprema Corte. Trump já afirmou que fará uma indicação – e adiantou que provavelmente escolherá uma mulher. Os republicanos ainda são maioria no Senado e decidirão o que fazer com a nomeação. Podem reverter o entendimento de quatro anos atrás? Certamente que sim, mas se o fizerem também mostrarão, de forma hipócrita, que toda a argumentação sobre “ouvir o povo americano” era mera cortina de fumaça para um casuísmo que pretendia prejudicar Barack Obama.

O que realmente tira o sono dos democratas, no entanto, não é o fato de Trump fazer uma nomeação, mas o que ela pode significar para a Suprema Corte em termos ideológicos. A morte de Ginsburg deixa apenas três justices de tendência dita “progressista” – Stephen Breyer, Elena Kagan e Sonia Sotomayor –, contra cinco mais conservadores: Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh (estes dois indicados por Trump), Clarence Thomas, Samuel Alito e o presidente da corte, John Roberts (este último, com posições mais moderadas). Nomear mais um conservador deixaria dois terços da corte com este perfil.

Como os justices não têm mandato fixo, deixando a corte apenas em caso de morte ou aposentadoria por escolha própria, uma Suprema Corte mais conservadora terá impacto, por muitos anos, sobre uma série de temas importantes da vida americana, como o direito à vida, liberdades básicas como a religiosa, políticas identitárias e o direito à posse e uso de armas. Nunca é demais recordar, por exemplo, que o aborto só se tornou permitido em todo o território norte-americano graças a uma decisão judicial, Roe v. Wade, de 1973. Também foi a Suprema Corte que derrubou as legislações estaduais sobre uniões civis homoafetivas, legalizando-as em todo o país, em 2015. A corte ainda pode julgar ações sobre o direito de um profissional (como um confeiteiro, florista ou fotógrafo) exercer a objeção de consciência, recusando-se a trabalhar em celebrações de uniões homoafetivas. São todos temas que opõem não apenas visões ideológicas, mas a própria concepção de como a Constituição norte-americana deve ser lida e interpretada.

As decisões da Suprema Corte, por sua relevância, sempre repercutem mundialmente, daí a importância da decisão que será tomada em breve por Trump e pelos senadores norte-americanos. Apesar de toda a controvérsia sobre como será conduzida a nomeação pelo Senado, o nome do escolhido é o mais importante. Um justice que tenha a compreensão correta sobre a dignidade da vida humana, sobre a liberdade e sobre o papel da Suprema Corte fará um bem que pode até mesmo transcender as fronteiras norte-americanas.

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