
Quem ainda pede e espera qualquer tipo de “autocontenção” do Supremo Tribunal Federal em sua escalada autoritária teve um triste choque de realidade nos últimos dias. A Primeira Turma da corte tornou réu o perito Eduardo Tagliaferro, ex-assessor do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que responderá pelos crimes de obstrução de investigação relacionada a organização criminosa, violação de sigilo funcional, coação no curso do processo e (talvez a mais surreal das imputações) tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito – somadas, as penas em caso de condenação podem chegar a 22 anos.
Quem lê a lista de crimes atribuídos pela Procuradoria-Geral da República ao perito haverá de imaginar que ele talvez tenha cometido algum ato de extrema gravidade, capaz de abalar as estruturas da inabalada democracia brasileira, como escrever citações de ministros do Supremo em estátuas com batom, bater boca com ministros do Supremo em aeroportos estrangeiros, ou pedir que alguns ministros do Supremo tenham seus vistos norte-americanos revogados. Mas Tagliaferro – que também é cidadão italiano e está na Itália, aguardando uma decisão da Justiça local sobre o pedido de extradição feito por Alexandre de Moraes – não fez nada disso; em vez disso, expôs e denunciou a estrutura informal que usava servidores e juízes do TSE para abastecer inquéritos no Supremo, muitas vezes caçando justificativas para decisões que já tinham sido tomadas (com direito até mesmo a adulteração de informações para não levantar suspeitas), e que vasculhava publicações de réus e presos do 8 de janeiro em mídias sociais para decidir quem continuaria na cadeia ou quem poderia ir para casa – um “sistema chinês” no qual uma simples crítica ao governo ou ao STF podia significar permanência prolongada na Papuda ou na Colmeia.
PGR e STF fizeram com Tagliaferro o que fazem com todos aqueles que se tornaram um inconveniente para a atual autocracia judiciária: transformá-lo em “golpista”
Isso bastou para que PGR e STF adotassem o expediente padrão de todos aqueles que se tornaram, de alguma forma, um inconveniente para a atual autocracia judiciária: associar Tagliaferro aos supostos golpistas que o Supremo vem julgando e condenando. “a participação do denunciado manifestou-se de forma engendrada com a organização criminosa que atuava com o objetivo de praticar golpe de Estado”, afirmou Moraes em seu voto. Como o perito permaneceu à frente da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (o braço do “Ministério da Verdade” no TSE) ao longo de todo o processo eleitoral de 2022, saindo apenas em maio de 2023, bem depois do 8 de janeiro, estaríamos diante de um caso incrível de agente duplo, que colaborava com a censura ampla, geral e irrestrita promovida por Moraes enquanto conspirava com os derrotados de outubro de 2022. Tratar as denúncias de Tagliaferro como coação ou tentativa de golpe revela um grau de surrealismo que nem os maiores expoentes desse gênero na literatura seriam capazes de produzir.
Já o dissemos aqui, e repetimos: em um país normal, as denúncias de Tagliaferro seriam investigadas, as mensagens divulgadas nas duas fases da “Vaza Toga” seriam periciadas para confirmar sua autenticidade (não deixa de ser irônico que a acusação de violação de sigilo funcional seja uma admissão implícita de que as mensagens são verdadeiras), e em caso positivo os envolvidos – todos eles, independentemente de posição – teriam de responder por sua atuação completamente fora dos limites legais. Em vez disso, o único investigado, denunciado e acusado é aquele que expôs o esquema abusivo, enquanto o escândalo é convenientemente abafado.
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Como se tudo isso não fosse suficientemente absurdo, há ainda o fato de Alexandre de Moraes estar a cargo do processo contra Tagliaferro, mesmo sendo personagem das denúncias do ex-assessor. Ainda que não haja mensagens diretamente enviadas por Moraes nos conteúdos tornados públicos, todos os participantes das conversas se referem a ordens dadas pelo ministro do Supremo, que em 2022 também presidiu o TSE. A defesa de Tagliaferro acionou o presidente do STF, Edson Fachin, argumentando pela suspeição de Moraes no caso. A julgar por muitas outras situações em que Moraes acumula papéis, inclusive os de vítima e julgador, sem que isso lhe cause problema algum, o resultado do pedido da defesa do perito é bastante previsível.
Previsível, aliás, também é o resultado do julgamento, mais uma para a coleção de show trials brasileiros “em defesa da democracia”. Desta vez, no entanto, em vez de punir supostos golpismos, o objetivo é bem mais prosaico: calar delatores que sabem demais e poderiam colocar um plano a perder – um tipo de prática que não é tão incomum assim, mas em outros ambientes, bem distantes de uma corte judicial.



