A esquerda brasileira teve mais uma oportunidade de demonstrar seu conceito bastante peculiar de “democracia” – aquela que só existe quando são as eleições são vencidas pelos seus candidatos – após a escolha de novos conselheiros tutelares em todo o país. A participação recorde de eleitores, com aumento de até 100% em algumas capitais, deveria ser amplamente saudada como sinal de um maior interesse da população; em vez disso, o que se viu foi um festival de intolerância, especialmente religiosa. Tudo porque boa parte da mobilização foi conduzida por conservadores, entre os quais muitos evangélicos, e teve como resultado um crescimento significativo desse perfil entre os cerca de 30 mil conselheiros eleitos.
A reação de esquerdistas na imprensa e na sociedade civil organizada, ao ver subitamente “invadido” um feudo que eles dominavam sem oposição alguma até agora, foi imediata. Jornalistas e colunistas se manifestaram dizendo que o eleitor “não tem que levar a sua fé [à urna]”, ou fazendo alusões à “extrema-direita” e a uma “ocupação reacionária”. Como se pessoas religiosas ou conservadoras não tivessem direito a votar de acordo com suas convicções – inclusive aquelas relativas à sua fé, que guia muitas escolhas pessoais, também em assuntos como a educação das crianças. Ou como se evangélicos ou conservadores não pudessem ser bons conselheiros tutelares. A ideia de fundo que guia tais reações não é a do Estado laico consagrado na Constituição brasileira, mas a intolerância religiosa característica de um laicismo que tenta anular a dimensão pública da religião, confinando-a aos espaços privados das residências e, no máximo, aos locais de culto.
Nada mais natural e democrático que eleitores preocupados com temas como drogas ou ideologia de gênero usem seu direito para escolher pessoas que, nos Conselhos Tutelares, atuarão na promoção dos valores que esse eleitor considera importantes
Ainda mais preocupante é a interferência das alas mais ideologizadas do Ministério Público, que afirmou estar investigando denúncias de “abuso de poder religioso”, um conceito que, apesar de mencionado em uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) datada do fim de 2022, não existe no ordenamento jurídico brasileiro e foi inclusive repelido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2020. Felizmente, não prosperaram naquela ocasião os argumentos do ministro relator, Edson Fachin, que se referiam não a uma possível coação ou ameaça (que, aliás, já têm punição legal), mas a uma “ascendência incorporada pelos expoentes das igrejas em setores específicos da comunidade”, como se apenas líderes religiosos tivessem esse tipo de influência, ou como se pessoas religiosas não tivessem a capacidade de fazer suas escolhas por conta própria.
Conservadores e pessoas religiosas têm uma série de valores perfeitamente legítimos na ordem democrática, e a partir dos quais eles julgam as plataformas daqueles que submetem seu nome ao crivo do eleitor. E isso não se aplica apenas às eleições gerais; afinal, várias destas convicções também se referem à maneira como a lei protege crianças e adolescentes, ou à forma como eles são educados, ou a políticas públicas voltadas à infância e adolescência – exatamente os temas com os quais lida um conselheiro tutelar. Nada mais natural e democrático, portanto, que os eleitores preocupados, por exemplo, com o avanço das drogas, com a imposição da ideologia de gênero e com o avanço estatal sobre a autoridade paterna, entre outras situações, usem seu direito para escolher pessoas que, nos Conselhos Tutelares, atuarão na promoção dos valores que o eleitor considera importantes.
A esquerda sempre demonstrou uma notável capacidade de organização para eleger candidatos que compartilham dessa visão de mundo nas mais diversas instâncias representativas da sociedade ou de determinados segmentos, incluindo conselhos de todo tipo. E, ao fazê-lo, está perfeitamente dentro do seu direito; o desinteresse dos demais cidadãos aptos a participar desses processos de escolha não tira a legitimidade dos eleitos. Mas todos os outros brasileiros também podem se organizar e unir esforços em torno de ideias e pessoas. A reação intolerante ao exercício desse direito, no caso dos Conselhos Tutelares, revela um imenso déficit democrático que se manifesta na incapacidade de conceder carta de cidadania a certo ideário, e de reconhecer que a voz do povo nas urnas também é soberana quando diz aquilo que a militância não gosta de ouvir.
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