Na terça-feira, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, enviou ao Supremo Tribunal Federal a denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e pouco mais de 30 outras pessoas, a maioria das quais militares da ativa ou da reserva, mas também alguns civis, como assessores do ex-presidente ou ocupantes de certos cargos durante o seu governo. A entrega da denúncia é o passo seguinte depois que a Polícia Federal havia pedido, no fim de novembro de 2024, o indiciamento de Bolsonaro e outras 36 pessoas por uma suposta trama golpista, com o objetivo de impedir a posse de Lula e manter Bolsonaro no poder. A PGR deixou de fora 11 nomes da lista da PF, mas incluiu outros quatro, como o ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal (PRF) Silvinei Vasques.
Tanto a continuidade do processo, da maneira como ele vem sendo conduzido, quanto o próprio conteúdo da denúncia, no entanto, mostram que todas as fragilidades que vêm sendo apontadas desde a deflagração da Operação Tempus Veritatis, em fevereiro de 2024, seguem inalteradas, quando não agravadas. Em inúmeras ocasiões neste espaço, a Gazeta do Povo lembrou que a violação do princípio do juiz natural tem sido sistemática também neste caso, já que nenhum dos agora denunciados tem prerrogativa de foro. Além disso, o fato de o ministro Alexandre de Moraes ter sido apontado como possível vítima de um suposto complô para assassiná-lo o torna impedido de relatar e julgar o caso – por mais que o STF tenha decidido o contrário em dezembro do ano passado, em outra de suas decisões em que a vontade prevalece sobre a lei.
Que “defesa da democracia” é esta que atropela conquistas civilizatórias como são os princípios básicos da persecução penal?
A denúncia também faz pouco caso de outro princípio básico do Direito Penal, o da individualização da conduta, no qual um réu só pode ser condenado pelos crimes que efetivamente tenha cometido. Neste sentido, a imputação, a Bolsonaro e a vários outros, dos crimes de dano qualificado contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado – uma alusão evidente ao 8 de janeiro de 2023 – soam totalmente descoladas da realidade. E mesmo o restante da denúncia, com a atribuição de crimes contra o Estado Democrático de Direito ao ex-presidente e a seu entorno, torna-se extremamente problemática caso se queira levar a sério o Código Penal, especialmente seu artigo 15.
Da leitura da denúncia, pode-se de fato concluir que havia, nos altos escalões do governo federal e das Forças Armadas, um certo animus golpista, que pretendia uma virada de mesa. Que o próprio Bolsonaro compartilhasse desse animus não é algo que se possa descartar com toda a certeza. Ainda assim, e mesmo aceitando a autenticidade de documentos como a chamada “minuta do golpe”, o fato inequívoco para qualquer um que não esteja vivendo em um universo paralelo é que não houve golpe, nem sequer tentativa. Como também já afirmamos neste espaço, tanto a lei quanto a jurisprudência não consideram puníveis nem a cogitação, nem mesmo os atos preparatórios para um crime, a não ser que esses mesmos atos já sejam crimes em si mesmos. Redigir minutas e fazer reuniões, no entanto, não são atos que a lei proíba. Por mais graves que possam ter sido as ideias levantadas pelo grupo ora denunciado, trata-se de um caso de “desistência voluntária”, prevista no artigo 15 do Código Penal e que impede a responsabilização criminal, exceto “pelos atos já praticados”, caso fossem crimes – o que, repetimos, não é o caso.
Além disso, a denúncia e algumas circunstâncias que vieram a público após a entrega do documento ao STF mostram que estamos diante de mais fragilidades que apenas ressaltam a hipocrisia – não há outra palavra melhor – de muitos dos críticos da Operação Lava Jato, incluindo aqueles encastelados no Supremo. Enquanto os delatores da Lava Jato entregaram à força-tarefa inúmeros documentos que comprovavam as informações fornecidas (pois é o que prevê a lei da colaboração premiada), a denúncia da PGR contra Bolsonaro e seus auxiliares se baseia quase que totalmente na delação do tenente-coronel Mauro Cid, que pouco ou nada entregou além das próprias palavras.
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E há motivo suficiente para colocar em xeque ao menos parte das alegações de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, pois ele foi claramente coagido por Alexandre de Moraes: depois de afirmar “não vai dizer que eu não avisei”, o ministro fala da existência de um relatório de 700 páginas feito pela PF, insinuando que contradições entre esse texto e as palavras de Cid poderiam trazer problema não apenas para ele, mas também para “pai, esposa e filha maior do colaborador”. Ironicamente, uma coação inexistente tem sido o principal argumento para que o ministro Dias Toffoli tenha anulado inúmeras provas e processos da Lava Jato. Gilmar Mendes chegou a afirmar (falsamente) que na Lava Jato “as pessoas só eram soltas, liberadas, depois de confessarem e fazer acordo”, e chamou essa prática de “coisa de pervertidos” e “tortura”. Dirá ele o mesmo, agora que a coação está até mesmo documentada?
Graças à obsessão de muitos ministros por falar fora dos autos, inclusive sobre assuntos que eles poderão vir a julgar, já podemos concluir que, a não ser que aconteça algo muito extraordinário, a denúncia será aceita e serão todos condenados. E, neste caso, teremos de perguntar: que “defesa da democracia” é esta que atropela conquistas civilizatórias como são os princípios básicos da persecução penal? O STF jogou no lixo a chance de dar a resposta correta a um fato evidentemente grave como foi o 8 de janeiro, quando preferiu abolir o juiz natural, a individualização da conduta e até a necessidade de provas. Que golpismos não podem prosperar no Brasil contemporâneo é óbvio, mas prender pessoas por crimes jamais tentados, baseando-se em delações obtidas em circunstâncias suspeitas, é apenas fazer uma demonstração de força que em nada ajuda a proteger a democracia.