O documento final da reunião de cúpula do G20, encerrada nessa terça-feira no Rio de Janeiro, ficou marcado por acusações de “tratoraço” por parte do Brasil – o negociador francês afirmou que nem ele, nem o presidente Emmanuel Macron chegaram a ver o texto final, mas Lula se apressou para bater o martelo, acabando com qualquer possibilidade de contestação. O evento, que começara sob a sombra do xingamento dirigido pela primeira-dama Janja ao bilionário Elon Musk, termina com o Brasil deixando sua marca no documento final em termos de assuntos caros a Lula; mas, com um grupo de nações tão heterogêneo e de interesses tão distintos, quando não antagônicos, é muito difícil que o texto não passe de mais uma carta de boas intenções, como tantas outras que costumam emergir desses encontros multilaterais.
Nenhuma pessoa ou governo de bom senso no mundo haverá de ser contrário ao combate à fome, nem à preservação ambiental. O lançamento de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza é um dos principais “legados” da presidência brasileira do G20, mas a nova iniciativa ainda precisará mostrar serviço para não ter o mesmo destino que várias outras iniciativas contra a fome – até o momento, as certezas são a criação de escritórios e conselhos, e a oferta brasileira para bancar metade dos custos com a governança da nova aliança global. Para dar uma roupagem mais nobre à ambição petista de uma tributação global sobre os super-ricos, o texto incluiu a menção a essa cobrança no capítulo sobre o combate à fome, mas esta é uma iniciativa quase natimorta; o fato de ela ter aparecido em um documento final pela primeira vez na história do G20 não significa que haja consenso a respeito do tema, tanto que a menção foi feita de forma genérica, sem detalhes como alíquotas ou critérios de cobrança.
De ditadores a protecionistas, sempre há alguém disposto a bloquear iniciativas globais quando convém
Quanto ao meio ambiente, o documento não traz nada de novo: reafirma as metas do Acordo de Paris, insiste para que cada nação siga buscando o objetivo de reduzir suas emissões de gases de efeito estufa para liminar o aquecimento global a 1,5 grau Celsius acima dos níveis pré-industriais, e reclama da falta de financiamento dos países ricos aos países pobres para que consigam atingir as metas. Assim como no caso do combate à fome, a presidência brasileira do G20 termina com a entrega de mais uma estrutura burocrática, a Força-Tarefa para a Mobilização Global contra a Mudança do Clima.
Fora da lista de boas intenções, as únicas menções mais próximas da realidade mundial foras as referências aos dois maiores conflitos da atualidade. Lula e seus aliados nos Brics certamente devem ter ficado muito satisfeitos com a ênfase muito maior dada às ações de Israel na Faixa de Gaza e no Líbano que à invasão russa da Ucrânia. Se no caso do Oriente Médio a declaração menciona a “situação humanitária catastrófica” e pede “o direito palestino à autodeterminação (...) com a visão da solução de dois Estados”, no caso ucraniano não há menção alguma ao respeito às fronteiras pré-invasão russa. O documento até afirma que “todos os Estados devem se abster da ameaça ou uso da força para buscar aquisição territorial contra a integridade territorial e soberania ou independência política de qualquer Estado”, mas esta afirmação genérica está feita em outro parágrafo da declaração final, não aquele referente à guerra na Ucrânia.
O leitor brasileiro atento ainda haverá de identificar as incoerências no fato de um governo petista ter endossado um documento que promete “salvaguardar a sustentabilidade fiscal”, enquanto trabalha para gastar cada vez mais; que fala em “dedicação em liderar pelo exemplo nos esforços globais contra a corrupção” enquanto aplaude o desmonte da Lava Jato; e que afirma que “mobilizar recursos para construir sistemas de água e saneamento sustentáveis e resilientes é essencial para um futuro mais saudável e equitativo para todos” enquanto tentou sabotar o Novo Marco do Saneamento. Mas, sendo atento, este mesmo leitor já sabe há muito tempo que é da essência do petismo que seu discurso seja diametralmente oposto à sua prática.
Como dissemos acima, ninguém há de negar que os objetivos estabelecidos pelo Brasil são importantes – à questão da fome e do meio ambiente, soma-se a chamada “reforma da governança global”, que muitas vezes acaba resumida à ambição brasileira por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Também é certo que apenas com sólida cooperação internacional serão resolvidos os desafios que são comuns a toda a humanidade. A eleição de Donald Trump, notoriamente avesso aos fóruns multilaterais, é um bode expiatório fácil para justificar qualquer futuro fracasso das iniciativas do G20 nos próximos quatro anos, mas o fato é que os choques de interesses entre nações já existiam antes que ele tivesse sido eleito pela primeira vez, em 2016, e permaneceram depois que ele perdeu a reeleição em 2020. De ditadores a protecionistas, sempre há alguém disposto a bloquear iniciativas globais quando convém, e só quando tais resistências forem superadas é que fóruns como o G20 conseguirão ir além dos discursos genéricos que marcam seus documentos.
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