
Todo ditador ou autocrata, após conquistar o poder, busca no instante seguinte consolidar sua posição, de forma que nada nem ninguém consiga reverter o statu quo ou removê-lo de seu posto. Os meios para isso são os mais diversos e estão registrados pela história; um deles é a alteração do ordenamento jurídico para garantir a permanência do mandatário e impedir quaisquer questionamentos ou contestações à sua atuação, eliminando o sistema de freios e contrapesos, essencial em uma democracia. Uma liminar do ministro Gilmar Mendes acaba de garantir exatamente isso em relação aos membros do STF.
Atendendo a pedidos do partido Solidariedade (cujo grande cacique, o deputado federal Paulinho da Força, é bastante próximo de vários ministros do Supremo) e da Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), Gilmar Mendes decidiu se livrar de trechos inconvenientes da Lei 1.079/50, que define os crimes de responsabilidade de diversas autoridades e o rito para sua cassação. Na liminar, o ministro determina que só o procurador-geral da República pode denunciar um membro do Supremo por crime de responsabilidade – o artigo 41 da lei afirma que qualquer cidadão brasileiro pode fazê-lo. Além disso, o artigo 47, que exige maioria simples de votos para a admissão da denúncia, também foi derrubado e substituído pela exigência de dois terços dos membros do Senado (o mesmo quórum necessário para a cassação definitiva). Por fim, Mendes ainda decidiu que “o mérito de decisões judiciais” não pode ser usado “como conduta típica para efeito de crime de responsabilidade”.
A consequência prática da liminar de Gilmar Mendes o fim da existência de contrapesos constitucionais ao Supremo, que se consolida como o poder absoluto no Brasil
Isso é blindagem pura e simples, substituindo-se o que diz a lei pelo que é mais conveniente para Gilmar Mendes e seus colegas de STF. Não há absolutamente nada na Constituição que esteja em conflito com a Lei 1.079 para justificar a alteração liminar de artigos, ainda mais em benefício próprio. A possibilidade de impeachment de um ministro do STF está, agora, sujeita a uma porta estreitíssima: a vontade de uma única pessoa, o procurador-geral da República; como já dissemos, se ele estiver “fechado” com os ministros, eles poderão fazer o que bem entenderem sem medo algum de arcar com as consequências. A exigência de dois terços do Senado para a aceitação da denúncia poderia até fazer sentido em vista da regra que exige essa mesma maioria na Câmara para a abertura de um processo de impeachment contra um presidente da República; mas, em 2015, o STF bagunçou o rito ao exigir uma etapa adicional, não prevista em lei, na qual o Senado também teria de votar a admissão da denúncia – bastando, para isso, a maioria simples. A liminar de Gilmar Mendes cria, portanto, outra vantagem para os ministros na comparação com as demais autoridades.
Um destaque especial deve ser feito à determinação de que o mérito de decisões judiciais nunca poderá ser invocado como razão para um impeachment de ministro do Supremo. À primeira vista, faz sentido impedir retaliações por “crimes de hermenêutica” – a própria Gazeta do Povo demonstrou essa preocupação durante a tramitação de projetos de lei como o do abuso de autoridade. No entanto, a blindagem total é absurda porque as decisões judiciais são o meio ordinário de trabalho de um magistrado; seriam, grosso modo, o equivalente judiciário de um ato de governo do Executivo – e bem sabemos que atos de governo podem, sim, constituir crime de responsabilidade. Se um ministro do STF usa seus votos e decisões para atropelar a Constituição, abusar de sua autoridade, eliminar direitos e garantias democráticas, ou perseguir cidadãos por motivos políticos, já não estamos falando de “crime de hermenêutica”, mas de abuso de prerrogativas. São “situações excepcionais em que a atividade jurisdicional seja utilizada como instrumento de desvio funcional ou abuso deliberado contra a própria Constituição”, como afirmou a Advocacia do Senado, e que não podem ficar impunes – mas ficarão, se a liminar for referendada em julgamento virtual marcado para a semana de 12 a 19 de dezembro.
VEJA TAMBÉM:
A consequência prática é, portanto, o fim da existência de contrapesos constitucionais ao Supremo, que se consolida como o poder absoluto no Brasil. O contrapeso segue existindo no papel, mas de forma muito tímida, dependente do filtro de uma única pessoa, e exigindo condições impossíveis para seu funcionamento. Acreditar que algo assim possa funcionar é ter a mesma ingenuidade dos que aplaudiram os excessos do Supremo quando havia uma “boa causa” (leia-se a prisão de Jair Bolsonaro e a aniquilação do “bolsonarismo”), e agora pedem a autocontenção da corte. Pois eles acabam de receber uma resposta à altura.



