
A partir da próxima sexta-feira, dia 12, o plenário do Supremo Tribunal Federal começa a julgar a liminar de Gilmar Mendes que muda drasticamente as regras para a cassação de ministros da corte, limitando ao procurador-geral da República a prerrogativa de oferecer denúncia ao Senado e elevando o número mínimo de senadores necessários para a abertura do processo. A tendência é de que a liminar seja referendada por ampla maioria, mostrando que, para os ministros, o povo – que está na raiz do termo “democracia” – não passa de um inconveniente, ou mesmo um perigo que precisa ser contido.
Em sua liminar, Gilmar recorreu ao já manjado truque do “controle de constitucionalidade”, instrumento que é uma das atribuições da suprema corte, mas que no Brasil foi desvirtuado há muito tempo. Em vez de ser uma análise técnica a respeito da compatibilidade entre uma certa lei ou prática administrativa e a Constituição, tornou-se a mera imposição das vontades dos ministros a respeito de determinado tema: é assim que os ministros derrubam, reescrevem ou mesmo criam normas legais, ainda que os textos aprovados pelo Congresso em nada violem nem a letra, nem o espírito da Constituição. Foi o que ocorreu agora, com a Lei 1.079/50, que prevê a possibilidade de impeachment de diversas autoridades – incluindo os ministros do Supremo.
A admissão de Gilmar Mendes desnuda a alma dos ministros: eles querem continuar impondo a própria vontade, acima das leis e da Constituição
E Gilmar Mendes nem sequer esconde suas motivações. O Brasil já cassou dois presidentes da República de acordo com a Lei 1.079/50 – e jamais ocorreu a ambos os mandatários cassados, nem a seus advogados, nem a suas bases de apoio parlamentar, argumentar que a lei era inconstitucional ou teria “caducado” por ter sido promulgada sob a égide da Carta Magna de 1946, e que já foi substituída por outras duas Constituições, em 1967 e 1988. Por que, então, alterá-la neste momento? O ministro respondeu sem o menor pudor, ao participar de um evento em Brasília, na quinta-feira passada: “As pessoas dizem: mas por que liminar? Eu estou lhes dando as razões. Com tantos pedidos de impeachment, com as pessoas anunciando que farão campanhas eleitorais para obter maioria no Senado, dois terços do Senado, para fazer o impeachment”.
Em outras palavras, o ministro treme diante da possibilidade de os “213 milhões de pequenos tiranos” – na infeliz frase de sua colega Cármen Lúcia, muito representativa de como ela enxerga o povo – considerarem importante que o Senado exerça a contento seu papel de contrapeso do STF, a ponto de elegerem senadores dispostos a conter os abusos do Supremo; como a blindagem oferecida pela imprensa e por boa parte da sociedade civil organizada ao longo dos últimos anos está começando a ceder, ainda que muito timidamente, os ministros decidiram agir por conta própria para garantir que permaneçam em seus cargos, não importa o que fizerem. Criar regras muito mais exigentes para o impeachment foi a maneira que Gilmar Mendes encontrou, embora, aparentemente, o melhor para ele seria acabar de vez com a possibilidade, a julgar pelo que escreveu na liminar, chamando de “função atípica e excêntrica” a competência do Senado de “processar e julgar juízes pela prática de crime de responsabilidade”.
VEJA TAMBÉM:
Boa parte da liminar é uma defesa de importantes prerrogativas da magistratura, como forma de garantir que juízes decidam com liberdade, sem pressões políticas. São trechos irretocáveis, mas não é isso o que verdadeiramente está em jogo. Nenhuma dessas prerrogativas existe como carta branca para um juiz ou ministro do Supremo fazer o que bem entende, atropelando a Constituição, decidindo contra legem, usando decisões judiciais para promover perseguição política. É isso o que tem ocorrido no Brasil, e é para remediar essa situação que a campanha para o Senado em 2026 ganhou os contornos atuais: não para forçar o Supremo a decidir conforme as preferências político-ideológicas do grupo majoritário de ocasião, mas para ser o contrapeso que freia o abuso e a hipertrofia do Judiciário.
Mas a admissão de Gilmar Mendes desnuda a alma dos ministros: eles querem continuar impondo a própria vontade, acima das leis e da Constituição; perseguindo os críticos da corte, anônimos ou famosos; falando à vontade sobre tudo, fora dos autos; mantendo laços no mínimo questionáveis com investigados ou réus em processos que estão ou podem chegar ao STF; pressionando parlamentares para que aprovem matérias de seu interesse. E, para que isso seja possível, é preciso sufocar a voz da população que considere tudo isso um abuso da autoridade dos ministros. Que eles considerem o povo um perigo que tem de ser combatido é tudo o que precisamos saber sobre a “democracia” que eles tanto dizem estar defendendo.



