Na quinta-feira, a Polícia Federal pediu o indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outras 36 pessoas por supostamente tramarem um golpe de Estado no fim de 2022. O indiciamento marca o término das investigações da Operação Tempus Veritatis, deflagrada em fevereiro deste ano e que tratava de conversas entre a cúpula do poder federal e chefes das Forças Armadas para a redação de um decreto, no caso que ficou conhecido como o da “minuta do golpe” – uma investigação anterior àquela que levou à Operação Contragolpe, deflagrada nesta semana e que tratava de um plano para matar Lula, Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes. A entrega do relatório representa um novo teste para instituições que, infelizmente, têm falhado nos últimos anos, quando chamadas a exibir suas credenciais democráticas.
Além de Bolsonaro, a lista da PF também conta com 24 oficiais das Forças Armadas, da ativa e da reserva (incluindo sete generais e um almirante), ex-assessores civis de Bolsonaro, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, policiais federais e ex-membros da corporação, o empresário argentino Fernando Cerimedo, o padre católico José Eduardo de Oliveira e Silva, e o comentarista político Paulo Figueiredo Filho. Todos eles, segundo a Polícia Federal, teriam cooperado de alguma forma com uma tentativa de anular a eleição presidencial de 2022, seja elaborando a tal “minuta do golpe”, seja pressionando comandantes militares a aderir à trama, seja divulgando a tese de uma fraude eleitoral, seja de outras formas. Alguns dos indiciados também foram citados na Operação Contragolpe.
Caso o padrão atual de comportamento da PF, da PGR e do STF se repita, o oferecimento da denúncia e a posterior condenação de Bolsonaro e dos outros 36 suspeitos são praticamente certos
Confirmando-se as suspeitas, é evidente, como já dissemos em outras oportunidades, que se trata de episódios gravíssimos, mesmo que jamais tenham se concretizado. A pergunta fundamental a ser feita é: como se combate o golpismo nesses casos? A palavra-chave, aqui, é rigor. Não falamos de uma severidade que, a julgar por uma série de manifestações feitas após a notícia do indiciamento de Bolsonaro e dos outros suspeitos, não se diferenciaria muito de uma vingança cega; o termo se refere a um esforço total para que ocorra uma apuração criteriosa, e que todos os trâmites legais sejam seguidos em estrito respeito ao ordenamento jurídico nacional.
Isso significa, por exemplo, que jamais se pode confundir papéis de vítima, investigador, denunciante e julgador, muito menos concentrá-los na mesma pessoa. Que é preciso respeitar o princípio da individualização da conduta, em que cada pessoa só responde pelos crimes que efetivamente tenha cometido, com provas robustas. Que a ampla defesa e o princípio do juiz natural são inegociáveis. Que juízes só se pronunciam nos autos. Que, de acordo com a lei brasileira, um crime só é punível se, no mínimo, houve a tentativa de cometê-lo, mas não se foi apenas cogitado ou mesmo planejado. Que a pesca probatória é inaceitável.
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Mas nada disso tem sido seguido pelas autoridades, antes, durante e depois do processo eleitoral que culminou com a eleição de Lula. Desde a instauração do abusivo inquérito das fake news, em 2019, Moraes concentra atribuições de forma acintosa, acumulando ainda o papel de vítima em casos como o do entrevero no aeroporto de Roma (com direito a uma reviravolta tão surreal quanto conveniente por parte da Polícia Federal). Empresários já foram investigados por “crimes de cogitação” em conversas privadas de WhatsApp. A pesca probatória virou instrumento habitual de investigação, como podem atestar os Mantovani e o padre José Eduardo, e como demonstraram as trocas de mensagens entre assessores de Moraes no STF e no TSE, reveladas pelo jornalista Glenn Greenwald. A Procuradoria-Geral da República desistiu de individualizar as condutas dos manifestantes do 8 de janeiro, oferecendo denúncias genéricas contra centenas de réus, condenados pelo STF por estarem no local errado, na hora errada e na companhia errada, sem que haja um único indício que os ligue a crimes reais – o STF, aliás, se tornou uma espécie de “juízo universal”, julgando centenas de pessoas sem prerrogativa de foro em sessões virtuais nas quais nem existe a garantia de que os ministros tenham assistido aos vídeos nos quais os advogados defendem seus clientes. E os membros do STF, especialmente Moraes e o decano Gilmar Mendes, não perdem nenhuma oportunidade de se manifestar publicamente, antecipando suas opiniões sobre as denúncias.
No caso do indiciamento de Bolsonaro e dos demais 36 suspeitos, ainda será preciso que a PGR analise o relatório da PF e decida se oferece denúncia, o que talvez fique para o ano que vem. Embora o caminho ainda seja longo, não é preciso ter dotes premonitórios sobrenaturais para afirmar que, caso o padrão que acabamos de descrever se repita, o oferecimento da denúncia e a posterior condenação são praticamente certos, independentemente de as conspirações terem existido e independentemente de como cada envolvido se portou nela. As instituições terão sido testadas e reprovadas mais uma vez, pois continuarão fazendo justiçamentos em vez de justiça. E ainda dirão que a “democracia” está preservada – mesmo que à custa da destruição do devido processo legal.
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