Mais uma oportunidade para incentivar estados e municípios a realizar um ajuste fiscal, ainda que no futuro, foi desperdiçada pela Câmara dos Deputados ao aprovar, na terça-feira, dia 13, um plano de socorro construído sob os escombros do excelente Plano Mansueto. O projeto original era um mecanismo bastante interessante, que dava a governadores e prefeitos a escolha entre várias ações de ajuste fiscal que, se realizadas, permitiriam uma renegociação de dívidas com a União; o seu substituto (que ainda precisa passar pelo Senado e pela sanção presidencial) é, basicamente, a entrega pura e simples de dinheiro da União para estados e municípios quase sem contrapartida alguma – as únicas exigências feitas ali não passam de obviedades que, se omitidas, apenas acrescentariam ao absurdo que os deputados fizeram com o texto original do governo.
Poderia ter sido pior? Sem dúvida alguma. O primeiro substitutivo do deputado Pedro Paulo merecia todos os apelidos negativos que lhe foram dados, especialmente o de “bomba fiscal”. Ele abriria a porta para que os entes subnacionais se endividassem ainda mais, com garantia da União – e fatalmente o Tesouro Nacional seria chamado a pagar a conta, dada a situação atual de insolvência de vários estados brasileiros, que mais cedo ou mais tarde seriam incapazes de honrar os compromissos que assumiriam daqui em diante. Tudo isso sem que nada fosse pedido de governadores e prefeitos em termos de ajuste fiscal, adoção de teto de gastos, controle das despesas com o funcionalismo ou privatizações – nem agora, nem no futuro.
Fica mantida a sina dos problemas estruturais que afligem estados e municípios e os levam ao caos financeiro
Mas isso não significa que o texto aprovado na Câmara seja bom – ele é apenas melhor que o substituto anterior, mas ainda distante do aceitável. Na segunda-feira, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), apesar de seus ataques ao ministro Paulo Guedes, admitiu que “a ideia inicial [apoiada por Maia, diga-se de passagem] teve problemas” e que o relator deixaria de fora dois itens importantes: a possibilidade de estados e municípios se endividarem ainda mais com garantias da União; e a suspensão do pagamento das dívidas de estados e Distrito Federal com a União. Permaneceram a suspensão do pagamento de empréstimos feitos com bancos públicos e a recomposição da perda de arrecadação de estados e municípios.
Pela regra aprovada, de maio a outubro deste ano, o governo federal vai repor mensalmente a diferença do ICMS (estadual) e ISS (municipal) caso a arrecadação nos estados, Distrito Federal e municípios seja menor que a verificada entre abril e setembro de 2019 – e ela inevitavelmente será menor, já que foram os próprios estados e municípios que decidiram por variados graus de interrupção da atividade econômica para conter a expansão da Covid-19. Interrupção, aliás, que tem tudo para ganhar sobrevida; afinal, se os estados e municípios terão garantidos pelo menos os mesmos valores de ICMS e ISS arrecadados em 2019, que estímulo terão para planejar a reabertura gradual e cuidadosa dos negócios?
Em troca dessas dezenas de bilhões de reais, governadores e prefeitos só terão de cumprir duas exigências: aplicar esse dinheiro em ações de prevenção e combate à pandemia (e já existem dúvidas pertinentes sobre a capacidade de se fiscalizar esse uso), e se abster de oferecer benefícios e isenções fiscais que afetem a arrecadação do ICMS e do ISS, com exceção de benefícios diretamente ligados à Covid-19 e do adiamento de pagamento de impostos por parte de micro e pequenas empresas. Era o mínimo a se pedir em troca dessa compensação, mas muito pouco quando se sabe da situação fiscal de vários estados e municípios, resultado de décadas de negligência que também é motivada pela convicção de que o Tesouro Nacional abrirá o cofre em algum momento para afogar a irresponsabilidade em dinheiro novo, por vontade própria ou por decisão do Poder Legislativo, como se está fazendo agora.
Como já afirmamos, o Plano Mansueto poderia não ser a resposta ideal neste exato momento, em que se justifica um gasto público maior – inclusive com repasses aos entes subnacionais que gerenciam boa parte do sistema público de saúde – para conseguir conter a pandemia e mitigar o desastre causado pela paralisação da economia. Mas ele era o que de melhor foi pensado até hoje como meio de levar os estados e municípios a ter boas práticas de responsabilidade fiscal. Poderia ser deixado de lado e retomado em um momento mais propício. Em vez disso, acabou desfigurado em nome da “prerrogativa da União de imprimir moeda”, invocada por vários secretários estaduais da Fazenda. Mantém-se, assim, a sina dos problemas estruturais que afligem estados e municípios, bem como o “risco moral” que leva governadores e prefeitos a adiar indefinidamente seus necessários ajustes fiscais.
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