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Editorial

Os capachos do Supremo

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Weverton Rocha, relator do projeto da nova lei do impeachment, e Davi Alcolumbre, presidente do Senado. (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)

Quando um ministro da suprema corte de um país, sozinho, decide tomar para si o papel dos legisladores e reescrever – em benefício próprio! – uma lei que funcionou perfeitamente por 75 anos, que foi aplicada a contento em momentos críticos da história nacional, e que em nada contraria a Constituição, como o parlamento deveria reagir? Um Legislativo formado por representantes do povo que tenham uma espinha dorsal teria se levantado e respondido à altura, defendendo suas prerrogativas e o texto da lei mutilada pelo voluntarismo de um magistrado. Já o Congresso Nacional brasileiro abaixa a cabeça e serve de capacho, legitimando o golpe judiciário.

Receoso com a possibilidade de a direita conquistar maioria significativa no Senado em 2026, Gilmar Mendes resolveu reescrever a Lei 1.079/50, decidindo que, no caso da cassação de ministros do STF, apenas o procurador-geral da República pode oferecer denúncia (atualmente, qualquer brasileiro pode fazê-lo), que será aceita somente com o endosso de dois terços dos senadores (em vez da maioria simples exigida na lei). Com isso, o ministro criou não apenas uma desigualdade gritante em relação ao impeachment de outras autoridades; ele praticamente blindou a si mesmo e a seus colegas de qualquer possibilidade de cassação, independentemente das barbaridades que cometam, bastando-lhes a camaradagem do procurador-geral. Em resumo, Gilmar Mendes fez de si mesmo e dos demais ministros um grupo de intocáveis.

Gilmar Mendes, em sua liminar, blindou a si mesmo e a seus colegas de qualquer possibilidade de cassação, independentemente das barbaridades que cometam

De imediato, muitos senadores reagiram à liminar, e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), falou em “mais uma decisão de magistrado do STF tentando usurpar decisão do Poder Legislativo”, acrescentando que “eventuais abusos no uso desse direito não podem levar à anulação desse comando legal, muito menos por meio de decisão judicial”. Por um momento, até pareceu que Alcolumbre (que tem segurado todos os pedidos de impeachment de ministros do Supremo que chegam à sua mesa) fosse de fato resistir – mas era apenas impressão. Naquela mesma ocasião, ao dizer que “somente uma alteração legislativa seria capaz de rever conceitos puramente legais”, ele deixava a porta aberta para a solução dos capachos: se o Congresso endossasse, em um projeto de lei, ao menos parte da manobra de Gilmar Mendes, o problema estaria resolvido.

Depois de uma mordida final, na forma de uma nota que flertava com a possibilidade de uma PEC que restaurasse as regras da Lei 1.079, Alcolumbre começou a assoprar, colocando para andar um projeto de lei de 2023, de autoria de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e que, na sua versão mais atual, do senador Weverton Rocha (PDT-MA), cristaliza em lei partes importantes da liminar de Mendes. Ela reduz bastante, por exemplo, a lista de quem pode pedir o impeachment de autoridades: a PGR, entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e partidos políticos com representação no Congresso. O cidadão comum, esse de quem “todo poder emana”, segundo a Constituição, terá de juntar mais de 1,5 milhão de assinaturas (1% do eleitorado) se quiser exercer um direito que a lei lhe concedia antes da canetada de Gilmar Mendes. Ironicamente, um controle de constitucionalidade digno do nome apontaria que esta regra se choca com o inciso XXXIV do artigo 5.º da Carta Magna, pelo qual “são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; (...)”. Controle de constitucionalidade digno do nome, no entanto, é artigo raro no Brasil de hoje. O texto também passaria a exigir maioria qualificada para a abertura de processos de cassação, ao contrário do que ocorre hoje.

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Se há algo de positivo no que foi divulgado sobre o parecer do relator, é a regra que dá um prazo para o presidente da casa legislativa responsável pela abertura do processo (por exemplo, a Câmara, no caso de presidentes da República, ou o Senado, no caso de ministros do Supremo) analisar o pedido e decidir sobre ele – hoje, é possível deixar os pedidos adormecidos nas gavetas de Brasília por tempo indeterminado. Em caso de arquivamento, o plenário da casa poderia desarquivá-lo por meio da maioria de dois terços. Esse dispositivo impediria que um presidente da Câmara ou do Senado represasse indefinidamente, por camaradagem ou conveniência, pedidos de impeachment solidamente embasados.

O parecer seria analisado na CCJ do Senado nesta quarta-feira, dia 10, mas foi retirado de pauta e talvez nem seja mais votado este ano. Enquanto isso, o Senado pediu que o Supremo suspendesse a liminar de Gilmar Mendes e cancelasse o julgamento virtual previsto para começar na sexta-feira, e no qual era certo que os ministros decidiriam manter a liminar. O pedido foi parcialmente acatado: Mendes retirou a liminar do plenário virtual e cancelou temporariamente a parte da decisão pela qual apenas a PGR poderia oferecer denúncia contra ministros do Supremo – um sinal implícito de que a discussão no Senado, mesmo que adiada, está se encaminhando para um desfecho conveniente ao ministro.

A Constituição diz que o Senado é o contrapeso do Supremo, mas ele prefere se comportar como serviçal do STF, “lavando” em projetos de lei o trabalho sujo do ativismo judicial

E aqui está o grande problema: uma lei que simplesmente valide, ao todo ou em suas partes mais importantes, a blindagem pretendida por Gilmar Mendes é o pior cenário possível, pois trata-se da imposição da vontade de um ministro do Supremo, apenas com o verniz de um processo legislativo normal. Não há independência quando um Legislativo vota e aprova leis com as mãos amarradas, “vigiado” por um outro poder, pronto a desfazer tudo o que não sair conforme o seu desejo – pois quem duvidaria de uma nova liminar alegando inconstitucionalidade, caso o Congresso aprovasse uma nova lei do impeachment que fosse mais semelhante à Lei 1.079/50 que às regras desejadas por Gilmar Mendes?

Os senadores estão diante daquilo que se convencionou chamar de “crise existencial”. A Constituição diz que eles são o contrapeso do Supremo, mas eles – ou ao menos parte significativa deles – estão preferindo se comportar como os serviçais do STF, “lavando” em projetos de lei o trabalho sujo do ativismo judicial. A tramitação desta nova lei do impeachment dá aos parlamentares uma escolha simples: abrir mão desse servilismo covarde, ou admitir de vez que não passam de instância carimbadora das vontades supremas.

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