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O presidente Lula (PT) e o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP)
O presidente Lula (PT) e o deputado federal Guilherme Boulos (PSOL-SP)| Foto: Ricardo Stuckert / PR

O vexatório evento em comemoração ao Dia do Trabalho, 1º de maio, organizado pela CUT e que teve o presidente Lula como figura central, acumula muitos pontos que precisam ser esclarecidos. Além de ser questionável do ponto de vista da Justiça Eleitoral, uma vez que Lula descaradamente pediu votos para seu candidato à Prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos, o que pode configurar não só propaganda eleitoral antecipada, abuso de poder econômico e uso indevido dos meios de comunicação social, outro ponto que chama a atenção é o financiamento das comemorações.

Segundo dados do Sistema de Acesso às Leis de Incentivo à Cultura (Salic), a produtora Veredas Gestão Cultural, responsável pelo evento, batizado oficialmente de “Festival Cultura e Direitos”, captou R$ 250 mil por meio da lei de incentivo à cultura (Lei Rouanet), oferecidos por uma única empresa, uma faculdade privada de medicina. A meta da produtora era bem mais ambiciosa, captar R$ 6,3 milhões, que seriam usados, segundo consta no Salic, para "realizar um grande show de samba na cidade de São Paulo" e espetáculos regionais em outras 19 cidades. Informações apuradas pela Gazeta do Povo mostram ainda que o Ministério da Cultura (MinC) não divulgou, no Sistema de Acesso às Leis de Incentivo à Cultura (Salic), os pareceres técnicos exigidos pela lei.

A Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, nunca teve e não tem como objetivo financiar atos políticos.

O valor captado da faculdade através da Lei Rouanet é pequeno quando comparado ao que a produtora recebeu da Petrobras. Foram R$ 3 milhões destinados pela estatal através do Programa Petrobras Cultural. No Salic, não há registro desse patrocínio. O Conselho Nacional do Serviço Social da Indústria (SESI) também patrocinou o evento, mas não divulgou qual o valor destinado. Mas ressaltou que não apoia eventos políticos partidários e que o evento apoiado foi o “Ato do 1º de Maio unificado das centrais sindicais do país, destinado a celebrar a luta e a organização dos trabalhadores e trabalhadoras”.

A Lei Federal de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet, nunca teve e não tem como objetivo financiar atos políticos. Nascida na época da Presidência de Fernando Collor, a lei foi criada pelo então ministro da Cultura, Paulo Sérgio Rouanet, um liberal que se opunha à centralização do processo decisório do fomento federal à cultura. Antes da Lei Rouanet, o Estado arrecadava os impostos e o setor cultural pleiteava à burocracia federal verbas para os seus projetos. Depois da Lei Rouanet, os artistas passaram a procurar empresários dispostos a financiar diretamente os seus projetos. O Estado entraria com a renúncia fiscal: em vez de arrecadar o dinheiro e entregá-lo para quem os burocratas de turno acharem melhor, o Estado abriria mão do dinheiro para que o projeto o recebesse diretamente.

Por se tratar de dinheiro que o Estado deixa de arrecadar, cabe ao próprio Estado garantir o uso correto dos recursos para combater fraudes fiscais e eventual mau uso da verba captada. Se essa etapa não receber a devida atenção, a Lei Rouanet poderia ser um mero mecanismo para sonegar impostos: o empresário “patrocinaria” um artista fantasma e embolsaria o dinheiro depois. Por isso, o agente cultural passa por uma complexa burocracia para autorizar a captação dos recursos, explicando de quanto precisa e discriminando como o valor será gasto.

Só depois de obtida a autorização, o agente cultural tentará a captação, convencendo patrocinadores a abater, no máximo, 4% do valor do seu imposto devido (em caso de pessoa jurídica; pessoas físicas podem abater até 6%) em troca de ver a logomarca da sua empresa nos agradecimentos de um filme, de um museu, de uma orquestra, de um show. Não apoiará, portanto, qualquer coisa, sob pena de ter o seu nome vinculado a algo que cause repulsa em seu público. Dessa forma, a faculdade que decidiu apoiar o evento do dia 1º de Maio escolheu conscientemente ter seu nome vinculado ao ato, sabendo de sua natureza e eventuais consequências.

No caso do evento do Dia do Trabalho, o projeto registrado no Salic para obter recursos da Lei Rouanet não traz nenhuma menção à CUT ou qualquer entidade sindical – embora o que se tenha visto foi um ato formado quase que exclusivamente de integrantes de movimentos sindicais, muito menos à participação de Lula e outros políticos. O projeto oficial registrado e aprovado pela Lei Rouanet para poder captar recursos junto a empresas, traz a descrição do evento como sendo um “grande show de samba, na Praça da República (ou local similar), com sambistas de renome internacional”, com uma lista de possíveis atrações que incluíam Paulinho da Viola, Diogo Nogueira, Maria Rita, Quintal do Pagodinho e Lauana Prado, além da escola de Samba Mocidade Alegre. O evento, como se sabe, não teve nada disso. De shows musicais, o que se viu foram apresentações dos rappers Dexter, Afro X e Roger Deff, e dos pagodeiros Ivo Meirelles, Arlindinho e Almirzinho, que ocuparam o palco enquanto Lula não chegava. Após a finalização do discurso eleitoreiro de Lula, o público foi embora, o que na prática encerrou o evento.

Nesse aspecto, a própria Lei Rouanet pode ser – e espera-se que seja – empregada para salvaguardar o interesse público. Após a realização de qualquer evento realizado com recursos captados via leis de incentivo, o realizador precisa comprovar que cumpriu com aquilo que foi proposto, apresentar justificativas e provas de todos os gastos. Se não o fizer, não terá a prestação de contas aprovada e poderá ter que devolver aos cofres públicos os recursos captados. Assim, se for confirmado que houve desvio da finalidade e mau uso dos recursos captados para o Festival Cultura e Direitos, será necessário acionar a própria Lei Rouanet e ressarcir os cofres públicos.

Não podemos negar que leis e programas estatais de incentivo à cultura têm um importante papel. Graças a tais recursos, centenas de projetos sérios nas áreas de preservação de prédios históricos, de museus, artes plásticas, música e outras manifestações artísticas e culturais conseguem ser materializados e disponibilizados para um público que, sem esses programas, talvez nunca tivessem acesso a tais bens culturais. Um exemplo são as orquestras, que dificilmente sobreviveriam sem recursos públicos ou leis de incentivo. Propiciar à população acesso à cultura de qualidade, da exposição de um mestre da pintura aos grandes espetáculos musicais, de uma ópera às manifestações tradicionais de cada região brasileira, é dar ao cidadão a chance de ter contato com o que de mais belo e elevado o espírito humano produziu e produz, e o poder público tem seu papel nesta tarefa.

Mas quando a lei acaba desviada de sua finalidade original – que é o fomento à cultura – e passa a ser usada para financiar projetos ou eventos que de culturais nada têm e só servem para fins eleitoreiros, cabe à sociedade reagir, cobrando dos órgãos fiscalizadores a correta aplicação dos mecanismos de incentivo e denunciando eventuais abusos. A Lei Rouanet não pode ser usada para beneficiar os amigos do rei – muito menos o próprio rei.

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