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Luís Roberto Barroso, presidente do STF.
Luís Roberto Barroso, presidente do STF, disse em entrevista que pretende deixar como legado a “recivilização” do Brasil.| Foto: Antonio Augusto/STF

“O legado institucional que eu queria deixar é a total recivilização do país”, afirmou o presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, em entrevista ao jornal Valor Econômico por ocasião da marca de um ano à frente da corte. Uma frase aparentemente nobre, provavelmente dita naquele tom de voz sereno que é característico das manifestações públicas de Barroso, mas que revela a tentação constante, e na qual os ministros do STF têm caído repetidas vezes, de fazer da cúpula do Judiciário uma espécie de “guia genial” da nação brasileira.

Não é a primeira, e certamente não será a última indiscrição desse tipo, e também não é exclusividade de Barroso. Um antecessor seu na presidência do STF, Dias Toffoli, já se referiu a si e aos colegas como “editores de um país inteiro” e um “poder moderador” de um suposto semipresidencialismo brasileiro. Tais frases revelam a vontade de poder que move os ministros, mesmo sem terem um mandato popular conferido nas urnas para tal. Barroso, no entanto, vai além: ele não apenas quer o poder, mas o deseja para levar o país na direção que ele deseja, como já afirmou inúmeras vezes em suas referências ao papel “iluminista” e “contramajoritário” do STF, que tem a missão de “empurrar a história na direção certa” – ou, melhor dizendo, a direção que Barroso julga ser a certa.

Na “civilização” que o STF está criando, as convicções da população pouco importam diante da ideologia de 11 “iluminados”; a corrupção respira aliviada; e as liberdades e garantias democráticas são abolidas

Embora ele não tenha mencionado os temas na entrevista ao Valor, sabemos, por exemplo, que Barroso considera sinais de “obscurantismo” e “barbárie” (afinal, só se “civiliza” um bando de bárbaros) a opção dos brasileiros pela defesa da vida desde a concepção, ou a convicção de que as drogas fazem tanto mal aos indivíduos e à sociedade que é melhor o Estado proibir totalmente seu uso. Sua colega (e também ex-presidente do STF) Cármen Lúcia, em 2018, se disse preocupada com “uma mudança (...) conservadora em termos de costumes. Às vezes, na minha compreensão de mundo, e é só na minha, não significa que esteja certa, perigosamente conservadora”. Quando Barroso diz ao Valor que “a democracia tem lugar para liberal, para conservador, para progressista”, está apenas querendo enganar os incautos. Em sua “civilização” não há lugar para certas posições morais.

Da mesma forma, na “civilização” que o STF está construindo, antes e durante a presidência de Barroso, a corrupção tem passe livre e a história do heroico combate à ladroagem é reescrita para transformar os bandidos em vítimas, e os agentes da lei em bandidos. Baseando-se pura e simplesmente em ilações, Dias Toffoli tem sido o grande protagonista desse desmonte, especialmente nos últimos 12 meses, mas ele não age sozinho. Ainda que neste assunto Barroso tenha uma coleção de bons votos – ele foi favorável, por exemplo, à prisão em segunda instância, e contrário à suspeição de Sergio Moro e à anulação de julgamentos em que delatores e delatados entregaram simultaneamente suas alegações finais –, o atual presidente do STF tem sido rotineiramente vencido, o que faz da corte, hoje, o maior promotor da impunidade no país.

O único caminho apontado por Barroso na entrevista para a tal “recivilização” que ele almeja é o “fim desses pontos de tensão, como os julgamentos sobre o 8 de janeiro” e os demais inquéritos abusivos que estão nas mãos de Alexandre de Moraes. No entanto, o presidente do STF coloca ênfase demais no encerramento dos processos, quando a maneira como eles terminarão é muito mais essencial. O que é “civilizado”: um país que destrói a liberdade de expressão, o devido processo legal, o direito à ampla defesa, a necessidade de individualização de conduta? Ou um país onde a principal corte as defende e protege com unhas e dentes? Encerrar os processos com uma série de condenações que desafiam a ordem jurídica e o Estado de Direito não deixará o Brasil um milímetro sequer mais próximo de um país “civilizado” – e Barroso é parte integrante disso, pois votou pela aceitação de denúncias sem a devida individualização de conduta, e tem votado pela condenação de réus do 8 de janeiro contra os quais não há uma evidência sequer, além de ter defendido a suspensão do X na entrevista ao Valor.

Este é o país que o STF está criando: um Brasil onde as convicções da população pouco importam diante da ideologia de 11 “iluminados”; onde a corrupção respira aliviada; onde as liberdades e garantias democráticas são abolidas; onde ministros atropelam leis rotineiramente, reescrevendo-as conforme sua vontade; onde os membros do STF mandam a discrição às favas, participando de eventos sucessivos em que confraternizam com outros poderes e com patrocinadores generosos, que têm interesses em processos na corte – e Barroso fez pouco da necessidade de um código que evite absurdos como o “Gilmarpalooza” anual lisboeta. Só alguém muito dominado pela húbris pode chamar isso de “civilização”.

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