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Powerpoint do Deltan
Deltan Dallagnol durante a apresentação em que usou o PowerPoint para apresentar denúncia contra Lula.| Foto: Hugo Harada/Gazeta do Povo/Arquivo

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) pode, em fevereiro, dar sua contribuição para o “Brasil invertido”, aquele em que os vilões se tornam vítimas, e em que os agentes públicos empenhados em cumprir a lei e punir os bandidos são criminalizados. A Quarta Turma da corte julgará um processo no qual o ex-presidente, ex-presidiário e ex-condenado Lula pede indenização de R$ 1 milhão ao ex-procurador Deltan Dallagnol, que coordenou a força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba. O motivo é a apresentação em PowerPoint feita em setembro de 2016, quando a Lava Jato apresentou a denúncia contra o petista por corrupção e lavagem de dinheiro, no caso do tríplex do Guarujá. Um dos slides, que se tornou tão célebre a ponto de se transformar em meme nas mídias sociais, trazia expressões como “maior beneficiado” e “perpetuação criminosa no poder”, apontando para o nome de Lula ao centro.

Uma das marcas da Lava Jato foi a sua estratégia de comunicação, em que os procuradores se empenhavam ao máximo em explicar à sociedade, de uma forma que todos pudessem entender, como funcionava o intrincadíssimo esquema montado pelo petismo para se perpetuar criminosamente no poder. As entrevistas coletivas concedidas a cada fase da operação ou em cada evento importante – como era, sem dúvida, a apresentação da denúncia contra um ex-presidente da República – faziam parte dessa escolha. O próprio Dallagnol já afirmou que, naquele caso em especial, a força-tarefa havia cometido um “erro de conta”; mas onde está a base jurídica para transformar um “erro de conta”, uma escolha que pode não ter sido a melhor, em um ato passível de indenização milionária?

Qualquer decisão que dê razão a Lula seria mais uma agressão à liberdade de expressão, especialmente grave porque a nova mordaça atingiria os membros do MP no coração do seu exercício profissional

Duas instâncias do Judiciário não viram nenhuma irregularidade. Lula apresentou sua ação em dezembro de 2016; um ano depois, o juiz Carlo Mazza Britto Melfi, da 5.ª Vara Cível de São Bernardo do Campo (SP), negou o pedido; sua decisão foi mantida pela 8.ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo em setembro de 2018. O acórdão da decisão de segunda instância ressaltava a “notoriedade do autor” e a “grande repercussão dos fatos” para justificar a coletiva e os slides, reconhecendo a “inexistência de abuso nas expressões utilizadas na referida divulgação”. Tanto os desembargadores do TJ-SP quanto Melfi entenderam que a realização da coletiva era justificada por se tratar de um ato oficial como a apresentação da denúncia, e seu conteúdo era condizente com os elementos que a Lava Jato estava levando à Justiça.

A aplicação do duplo grau de jurisdição, com duas decisões no mesmo sentido, deveria bastar para que o caso fosse dado por encerrado, se não estivéssemos em um país com um labirinto processual como o brasileiro. Lula resolveu ir ao STJ, mas o TJ-SP, a quem cabia analisar a viabilidade do recurso, negou-o; apesar disso, o ministro Luís Felipe Salomão resolveu admiti-lo. É possível que a corte acabe se atendo a aspectos puramente processuais, como o fato de Lula ter processado Dallagnol diretamente, quando o entendimento atual é o de que ações cíveis contra agentes públicos por atos relativos ao exercício do cargo são ajuizadas contra a União, não contra os indivíduos; ou o fato de a ação original ter sido apresentada na Justiça estadual paulista e não na Justiça Federal em Curitiba, onde a coletiva ocorreu. Neste caso, o STJ não estará analisando o mérito da questão. Mas há a possibilidade de que o faça, confirmando ou revertendo as decisões de primeira e segunda instâncias – e, neste último caso, ajudará a erodir ainda mais a já combalida liberdade de expressão dos membros do MP.

Caso se proponha a analisar o caso em si, a pergunta a se fazer é: ao informar a sociedade sobre uma denúncia que está sendo formalmente feita, um membro do MP pode explicar seu teor, as evidências coletadas para embasar as acusações, afirmar por quais crimes determinada pessoa está sendo denunciada à Justiça, ainda que isso desagrade um investigado nacionalmente conhecido? Um esquema destinado à perpetuação criminosa no poder de um partido político pode ser descrito nesses termos? O maior beneficiado de um esquema de corrupção pode ser descrito como tal? As duas primeiras instâncias da Justiça já deram sua resposta, e souberam equilibrar bem a liberdade de expressão dos membros do MP e o direito à honra de personalidades políticas diante de casos de repercussão nacional e até internacional, como foi o petrolão. Tal liberdade é garantida tanto constitucionalmente quanto pela Lei Orgânica do Ministério Público; qualquer decisão que dê razão a Lula, neste caso, seria mais uma agressão a essa liberdade de expressão, especialmente grave porque, se em casos anteriores Dallagnol foi injustamente condenado por causa de entrevistas e tuítes, neste caso o STJ estaria criando uma mordaça que atinge os membros do MP no coração do seu exercício profissional.

Especialmente preocupante, por fim, é a leitura de que o “momento político” pode orientar a decisão da Quarta Turma do STJ – no caso, o momento desfavorável à Lava Jato e ao combate à corrupção, que sofrem revezes sucessivos no Legislativo e no Judiciário. Um julgamento político, e não técnico, só servirá para desacreditar mais ainda os tribunais superiores diante da população brasileira. O que era correto e lícito em 2017 e 2018 não deixou de sê-lo hoje. Impor restrições descabidas à liberdade de expressão apenas porque, de um lado, está um ex-procurador da Lava Jato alvo de críticas igualmente descabidas por ter recentemente optado pela carreira política e, de outro, está um ex-presidente ainda popular apesar de todo o mal feito ao país é julgar processos pela capa e não pelo conteúdo, para usar a expressão do ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello.

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