O mês de fevereiro vai chegando ao fim e o presidente Lula ainda não se retratou daquela que é, talvez, a declaração mais abjeta já feita por ele no campo da política internacional – uma área em que a coleção de frases deploráveis saídas da boca presidencial não é pequena, o que só reforça sua gravidade. “O que está acontecendo na Faixa de Gaza não existe em nenhum outro momento histórico – aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”, afirmou Lula durante entrevista coletiva na Etiópia, em 18 de fevereiro, elevando sua condenação à ofensiva israelense a um patamar inédito de perversidade.
Nos dias que se seguiram, a estratégia de Lula e seus aliados na política, no mundo acadêmico e no jornalismo tem sido insistir na tese da existência de um “genocídio” em Gaza. O presidente repetiu a expressão em várias ocasiões, em discursos e publicações em mídias sociais, desde sua entrevista de 18 de fevereiro. Ocorre, no entanto, que Lula não havia simplesmente afirmado que a ação israelense era genocida: na Etiópia, ele foi muito além ao comparar diretamente a ofensiva em Gaza ao Holocausto, igualando assim os israelenses aos nazistas. É aqui que reside o maior dos absurdos ditos pelo petista, e que despertou justíssima indignação do governo israelense, de judeus dentro e fora do Brasil, e de qualquer pessoa minimamente sensata.
Lula, ao menos, não voltou a fazer essa comparação – o que levou comentaristas a dizer que ele havia “recuado”, embora seja um recuo muito curioso esse, que não traz consigo um simples reconhecimento do erro. O máximo que o petista fez até agora foi dizer, em entrevista a Kennedy Alencar, que não havia usado o termo “Holocausto” e que a crise diplomática se devia a um erro de interpretação do premiê israelense, Benjamin Netanyahu. É o tipo de afirmação que insulta a inteligência de quem quer que tenha um mínimo de conhecimento histórico: afinal, Lula pode até não ter proferido a palavra em questão, mas a que outro evento poderia ter se referido ao falar de “quando Hitler resolveu matar os judeus”?
A discussão séria sobre a condução da ofensiva israelense não interessa a Lula e a seus porta-vozes. Importa apenas usar frases de efeito, vandalizar a história e desrespeitar toda uma comunidade étnico-religiosa
Independentemente desta tentativa de Lula de negar ter dito o que indubitavelmente disse, os porta-vozes informais do presidente continuam trazendo o Holocausto à cena, usando em defesa de Lula uma série de raciocínios que partem de premissas verdadeiras para se chegar a conclusões falsas. Diz-se, por exemplo, que houve outros genocídios ao longo da história – o que é correto, a exemplo do Holodomor e dos genocídios armênio, timorense, ruandense e uigur. Afirma-se, ainda, que alguns desses genocídios tiveram mais vítimas que o Holocausto perpetrado pelos nazistas – o que também é correto, embora convenientemente as matanças cometidas por regimes comunistas acabem ignoradas; o novo mantra dos lulistas tem sido a menção aos horrores cometidos pelo rei belga Leopoldo II no Congo. Tudo isso tem o objetivo de reduzir ou anular a excepcionalidade do Holocausto cometido pelos nazistas contra os judeus.
Mas não foi o fator numérico nem um suposto ineditismo que transformaram o Holocausto na manifestação por excelência da barbárie humana. O projeto genocida dos nazistas, motivado por puro ódio étnico-religioso, foi deliberado, meticulosamente planejado, executado em escala industrial em campos de extermínio especialmente concebidos com o objetivo de dar a “solução final” para o “problema judeu”, muito longe das condições de um cenário de batalha, em que a população civil é vitimada por bombardeios ou trocas de tiros. Ainda que outros genocídios tenham um ou mais destes elementos em comum com o Holocausto, nenhum deles os reuniu em sua totalidade da forma como Hitler conseguiu fazer. Daí o absurdo completo da comparação feita por Lula.
A rigor, até mesmo a versão “atenuada” da sandice lulista, a acusação de genocídio em Gaza, é bastante controversa, pois as características da ação israelense não permitem uma classificação definitiva. Trata-se, é preciso recordar, não do extermínio deliberado de um povo por determinadas características que possua, mas de uma operação militar em resposta a um brutal ataque terrorista cometido pelo Hamas em 7 de outubro de 2023; operação esta que é realizada em uma das áreas mais densamente povoadas do mundo, e contra um adversário que usa a população civil como escudo humano, como já se sabia mesmo antes da invasão e foi novamente comprovado com todas as descobertas feitas pelas Forças de Defesa de Israel. Todas essas nuances têm sido levadas em conta por democracias como a alemã e a norte-americana, que, ao contrário do Brasil, opuseram-se à ação sul-africana na Corte Internacional de Justiça que pretendia condenar Israel por genocídio – mas, por outro lado, isso não impediu esses mesmos países de fazer as críticas que consideram pertinentes à maneira como o governo de Netanyahu tem conduzido a guerra.
Se Israel está ou não cometendo crimes de guerra em Gaza, é algo passível de discussão. Não é nosso objetivo dar respostas a essa questão, mas apenas ressaltar que, apesar da barbaridade do 7 de outubro, a reação israelense precisa ser proporcional – não no sentido de uma pueril igualdade de baixas entre um lado e de outro, mas na aplicação dos critérios que tornam uma ação proporcional ou desproporcional: por exemplo, se o meio escolhido é o melhor para atingir o objetivo proposto (o resgate dos reféns e o desmantelamento do Hamas); se todas as medidas estão sendo tomadas para evitar as mortes de civis; ou se os necessitados de ajuda humanitária estão tendo acesso a ela. A ampliação da ofensiva para o extremo sul de Gaza, na cidade de Rafah, tem despertado preocupação mesmo de aliados de Israel.
Mas a discussão séria sobre a condução da ofensiva israelense não interessa a Lula e a seus porta-vozes. Importa apenas usar frases de efeito, vandalizar a história e desrespeitar toda uma comunidade étnico-religiosa. O Brasil sai desse episódio completamente desacreditado no cenário internacional, mas os despautérios de Lula mobilizam a militância – é nisso que o presidente aposta, e é por isso que um pedido de desculpas à comunidade judaica, ainda que fosse a única atitude decente a tomar, é hoje algo impossível de esperar.
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