“O governo brasileiro condena o bombardeio que atingiu hoje o hospital infantil Ohmatdyt, em Kiev, que resultou em número expressivo de vítimas fatais, incluindo crianças.” Com essas palavras o Itamaraty inicia uma nota publicada no fim da noite de segunda-feira, 8 de julho. Com base neste trecho, o leitor descobre que houve um bombardeio contra um hospital infantil na Ucrânia – isso se o leitor souber que Kyiv é a capital ucraniana – e que há crianças entre os mortos. E só. No entanto, mesmo o mais desavisado dos leitores sabe que bombas simplesmente não chovem do céu sobre um hospital ou uma cidade; elas precisam ter sido lançadas por alguém. É este personagem, o autor dos ataques, que o Itamaraty não menciona nem no início, nem no meio, nem no fim de mais uma vergonhosa nota relacionada à guerra na Ucrânia.
O bombardeio ao hospital infantil é mais um dos inúmeros crimes de guerra cometidos pelo ditador russo, Vladimir Putin, que há mais de um ano tem mandado de prisão expedido contra si pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) pela deportação ilegal (leia-se sequestro) de crianças ucranianas, levadas à força para a Rússia. O hospital foi atingido por um dos mísseis que as defesas da Ucrânia não conseguiram interceptar, e que era parte de um ataque mais amplo, lançado pela Rússia contra várias cidades, sem poupar alvos civis, como bem demonstra o caso do hospital e de outros edifícios residenciais e comerciais atingidos. A missão de vigilância de direitos humanos da ONU na Ucrânia, que investigou o ataque, afirmou que “a análise das imagens de vídeo e a avaliação do local do incidente sugerem que é muito provável que o hospital infantil tenha sofrido um impacto direto”.
Não ter lado em um caso no qual estão muito claramente definidos os papéis de agressor e vítima não é neutralidade; é omissão, que sempre beneficia o agressor
Essa curiosa amnésia do Itamaraty nada tem de misteriosa: ela segue um padrão, o de omitir, quando possível, os responsáveis por atos bárbaros quando se trata de pessoas, países ou grupos com os quais o governo Lula simpatiza. Já está gravada na história da diplomacia brasileira a nota publicada após a barbárie terrorista do Hamas em 7 de outubro de 2023, e que não menciona pelo nome o grupo palestino. Nem mesmo quando foram confirmadas as primeiras mortes de brasileiros causadas pelos extremistas islâmicos, do gaúcho Ranani Glazer e da carioca Karla Stelzer, o Itamaraty foi capaz de afirmar que o Hamas havia sido o responsável pelos assassinatos; só após muita repercussão negativa o Ministério das Relações Exteriores começou a dar nome aos bois em suas notas sobre as vítimas do terrorismo palestino.
No caso da guerra na Ucrânia, Lula também escolheu o seu lado. O petista até mesmo afirmou que, caso Putin visitasse o Brasil, não seria preso, apesar de o país reconhecer a autoridade do TPI. “Acho que o Putin pode vir tranquilamente para o Brasil. Eu posso dizer que, se eu for presidente do Brasil, não há por que ele ser preso”, disse Lula em setembro do ano passado, em referência à reunião do G20 marcada para novembro deste ano no Rio de Janeiro. Dias depois, ele acabou recuando, confrontado com o fato de que a lei ainda vale algo no Direito Internacional, mas em dezembro voltou a dizer que a prisão “pode acontecer, pode não acontecer” caso Putin viesse ao Brasil. O Itamaraty chegou ao ponto de sugerir à ONU uma firula jurídica que protegeria autoridades condenadas por crimes de guerra em qualquer lugar do mundo, bastando que o país de origem do criminoso não fosse signatário do Estatuto de Roma, que criou o TPI – a Rússia é um desses países.
“Eu não faço defesa do Putin. (...) O que eu não faço é ter lado, o meu lado é a paz”, disse Lula em junho durante visita à Suíça. Mas não ter lado em um caso no qual estão muito claramente definidos os papéis de agressor e vítima não é neutralidade; é omissão, que sempre beneficia o agressor. Não é preciso que Lula se porte como cheerleader do ditador russo; basta poupá-lo da responsabilidade pela agressão, como acaba de ocorrer na nota sobre o bombardeio ao hospital, ou igualá-lo aos ucranianos, como Lula faz desde o início da guerra e como voltou a fazer na Suíça ao afirmar que tanto Putin quanto o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, “estão gostando da guerra”, porque do contrário já teriam parado para negociar. Uma declaração abjeta, já que os ucranianos não lutam porque gostam, mas porque está em jogo a sobrevivência de seu país.
As escolhas de Lula e do Itamaraty, pelo que dizem e pelo que deixam de dizer, envergonham o Brasil. Podem até ser bem recebidas pelos parceiros do Brics, que cada vez mais se torna um clubinho de autocracias sob influência chinesa, mas desmoralizam o país diante das democracias ocidentais, comprometidas com a ajuda à Ucrânia para que se defenda da invasão russa. De nada adianta o Itamaraty insistir em princípios como “não expansão do campo de batalha, não escalada dos combates e não inflamação da situação por qualquer parte” quando deixa de chamar à responsabilidade o causador de um ataque que viola todos os três pontos simultaneamente; repudiar o crime sem mencionar o criminoso cuja identidade é amplamente conhecida não passa de omissão hipócrita.
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