Na manhã desta quarta-feira, a Polícia Federal cumpriu 29 mandados de busca e apreensão no âmbito do inquérito que investiga a produção de fake news contra o Supremo Tribunal Federal. Os mandados foram cumpridos em Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Distrito Federal, e entre os alvos da ação estão apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, como o ex-deputado federal Roberto Jefferson; Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan; o jornalista Allan dos Santos; a ativista Sara Winter; e o YouTuber Bernardo Küster. As ações foram autorizadas pelo ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito, que nasceu e continua cercado de controvérsia.
Em momentos como este, e antes mesmo de entrarmos nas questões específicas do inquérito em curso, é preciso recordar um princípio que se impõe logo de imediato: as decisões do Judiciário precisam ser seguidas. Isso vale mesmo quando delas discordamos veementemente, até mesmo quando julgamos que afrontam a Constituição. Em diversas ocasiões, esta Gazeta já fez questão de considerar equivocadas decisões monocráticas ou colegiadas do Supremo nos mais diversos temas: o aborto de anencéfalos, a necessidade de aval do Legislativo para privatizações, o fim da prisão após condenação penal em segunda instância, a nulidade de julgamentos com réus delatores e delatados entregando ao mesmo tempo suas alegações finais, a equiparação da homofobia ao racismo. Mas em nenhum desses casos afirmamos que tais decisões deveriam ser descumpridas, desobedecidas ou desafiadas. A desobediência, aliás, é caminho seguro para se abrir uma crise institucional severa.
Este é um inquérito que nasceu envolto em controvérsia e que julgamos ferir garantias importantes da Constituição e princípios elementares do processo penal
Isso não significa, no entanto, que o inquérito das fake news esteja isento de problemas. Muito pelo contrário: trata-se de um inquérito que nasceu envolto em controvérsia e que julgamos ferir garantias importantes da Constituição e princípios elementares do processo penal, ainda que não seja essa a avaliação do Supremo até o momento. Aberto de forma genérica e sem objeto definido em março de 2019 pelo STF, a mando do ministro Dias Toffoli, a peça vem sendo alvo de críticas de juristas e procuradores de todo o país. O inquérito foi instaurado sem um fato específico, sem que ninguém fosse formalmente acusado, em um foro inadequado para julgar os casos, já que os ministros figuravam como supostas vítimas das fake news. As investigações foram iniciadas sem provocação do Ministério Público Federal ou de autoridade policial. Ainda por cima, corre em segredo de Justiça, de modo que os alvos das operações como a desta quarta-feira não têm tido sequer o direito de saber pelo que estão sendo investigados realmente.
No fim, o inquérito pode servir para tudo: desde intimidar pessoas que insultam algum ministro no Twitter a medidas de busca e apreensão (como ocorreu na casa do ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot), passando pela censura à imprensa (ocorrida em abril de 2019, e direcionada à revista Crusoé e ao site O Antagonista) e às redes sociais – nesta quarta-feira, além dos pedidos de busca e apreensão, Alexandre de Moraes também ordenou o bloqueio de contas nas redes sociais de várias pessoas, bem como a quebra dos sigilos fiscal e bancário de Hang e outros empresários.
Desde que o incêndio se formou, não faltaram bombeiros a tentar apagá-lo. Ainda no primeiro semestre do ano passado, a Rede Sustentabilidade recorreu ao STF para derrubar o inquérito. O relator do pedido, ministro Edson Fachin, podia ter decidido monocraticamente pelo arquivamento, de forma liminar, considerando as ilegalidades flagrantes, mas decidiu que a análise do caso caberia ao plenário da corte e solicitou a Dias Toffoli que marcasse uma data para o julgamento, o que jamais ocorreu. Também a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu o arquivamento do processo, mas foi ignorada pelo presidente do Supremo.
- Crusoé e Alexandre de Moraes: decisão equivocada em um inquérito ilegal e abusivo (editorial de 16 de abril de 2019)
- Plenário do STF é o último freio antes de uma crise institucional grave (editorial de 17 de abril de 2019)
- O inquérito das fake news nas mãos do plenário do STF (editorial de 15 de maio de 2019)
Sem que o plenário do STF seja capaz de encerrar o inquérito, outros agentes vão desarmando as bombas. Desde o ano passado, Moraes tem procurado desmembrar a peça, remetendo pedidos de investigação de casos concretos à PF nos estados, para tentar fazer com que o processo se encaixe em algum tipo de normalidade. A estratégia, no entanto, vem falhando, com procuradores pedindo o arquivamento das denúncias e sendo atendidos por juízes, devido ao chamado “vício de origem”. O mesmo poderia ocorrer na última instância, se a Polícia Federal cumprir seu trabalho diligentemente, com a independência necessária e sem cometer abusos, e se a PGR decidir não oferecer denúncia nos casos que permaneçam no âmbito do Supremo. Também a Advocacia-Geral da União pode se tornar um ator importante: o órgão avalia a possibilidade de acionar o Supremo contra o inquérito, revertendo assim a posição adotada pelo ex-advogado-geral André Mendonça – em setembro do ano passado, ele apoiou a investigação, mas agora, como ministro da Justiça, fez críticas ao inquérito.
O problema dos sites produtores de notícias falsas é real. As redes de perfis que atuam em conjunto no Twitter ou no Facebook, não raro investindo na difamação de opositores ao governo e utilizando perfis falsos e robôs, também é uma questão premente do ponto de vista da preservação de direitos. A maneira que Toffoli e Moraes escolheram para lidar com o tema foi a pior possível, mas tem de ser questionada pelos canais institucionais. Depois da operação desta quarta-feira, o atual procurador-geral da República, Augusto Aras, mudou sua posição inicial, favorável ao inquérito, para também solicitar o seu arquivamento, dando aos ministros mais uma chance de remediarem a situação. Se não o fizerem, ainda resta o senso de responsabilidade do MPF. E, no longo prazo, que os presidentes da República – o atual e os que virão – saibam remodelar o Supremo, escolhendo ministros contrários ao ativismo judicial, defensores da normalidade institucional e do papel do STF como guardião da Constituição contra seus verdadeiros inimigos.
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