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Editorial

Pacheco insiste em sua versão do Código Civil

O ex-presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). (Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)

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Ao sair da presidência do Senado, Rodrigo Pacheco decidiu deixar um "presente de grego" para o novo presidente da Casa, Davi Alcolumbre – e também para o Brasil. Em seu último dia no comando do Senado, em 31 de janeiro, Pacheco protocolou um projeto de lei que propõe alterações substanciais no Código Civil brasileiro – na verdade, se aprovado, o texto criaria um novo Código Civil para o país. Pacheco esperou até os últimos momentos de sua gestão como presidente do Senado para registrar a proposta, que já estava pronta há algum tempo, mas teria sido mais prudente se tivesse deixado o projeto esquecido no fundo da gaveta de seu gabinete.

Não há clima nem propósito para abrir uma discussão de tal magnitude dentro do Legislativo nacional neste momento, especialmente diante de tantos outros temas de mais urgência que precisam da atenção dos parlamentares. É discutível, aliás, se é mesmo necessário ao país um novo Código Civil, pois o atual, de 2002, é relativamente recente e bem construído. Se, de fato, há pontos não contemplados no texto atual da lei, como o direito digital, talvez o melhor caminho fosse projetos pontuais nesse sentido, e não a revolução pretendida pelo senador.

O Senado só perderia se iniciasse a discussão sobre o projeto de Pacheco sobre o Código Civil agora. Há temas mais urgentes esperando pela atenção plena dos congressistas. Para o bem do país, o suposto “legado” de Rodrigo Pacheco deve ficar nas gavetas do Senado, pelo menos por mais algum tempo

Já comentamos aqui neste espaço sobre a prioridade absoluta que deveria ser o foco do parlamento brasileiro neste ano: o retorno à normalidade institucional, solapada nos últimos anos pela hipertrofia do Judiciário. A eventual discussão sobre a versão de Rodrigo Pacheco para o Código Civil não contribuiria para isso; pelo contrário, poderia servir apenas para desviar a atenção dos congressistas daquilo que realmente interessa ao país.

O teor catastrófico do chamado PL 4/2025 já é bem conhecido: trata-se das mesmas propostas do anteprojeto apresentado aos senadores em abril do ano passado, fruto do trabalho de uma comissão de juristas convocada por Pacheco em 2023 para reformar o Código Civil. A primeira versão do texto era tão descabida, sugerindo alterações tão radicais e com repercussões diretas em temas como aborto, multiparentalidade, uniões poliafetivas e direitos dos animais, que acabou alvo de inúmeras e justas críticas. Foi apenas graças à pressão da sociedade  e dos parlamentares que o anteprojeto ganhou uma versão mais amena em alguns pontos. Ainda assim, o texto traz alterações significativas e complexas em relação ao Código atual. O projeto de Pacheco inclui, por exemplo, propostas agressivas sobre Direito Digital, incluindo a responsabilização das plataformas por publicações de usuários – tema atualmente em discussão no STF –, além de abordar questões como herança digital e inteligência artificial.

Só o fato de o STF estar em pleno julgamento sobre a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet, que determina que as plataformas não podem ser responsabilizadas por publicações de terceiros sem uma ordem judicial prévia, torna descabido colocar o projeto de Pacheco em tramitação agora. De nada adianta discutir um projeto que pode ter boa parte de seu conteúdo inviabilizado ou tornado desnecessário dependendo da decisão dos ministros do STF.

O senador Rodrigo Pacheco, ele mesmo um jurista, sempre tratou a revisão do Código Civil como um possível legado jurídico. Em 2024, quando o anteprojeto foi apresentado pela primeira vez, Pacheco queria que o projeto, tratado como uma mera “atualização” do Código Civil, tramitasse rapidamente, o que, felizmente, não aconteceu – na época, a proposta nem chegou a ganhar a forma de um projeto de lei. De fato, mudanças tão complexas não podem ser implementadas sem um amplo debate público intenso.

Em alguns países, as discussões duraram anos até que se chegasse a um Código Civil adequado; já a proposta do senador foi elaborada em poucos meses, no ano passado, ainda que tenha sido protocolada só agora. Sinal disso são as próprias inconsistências técnicas do projeto, que nem considera  mudanças recentes na legislação, como uma nova lei sobre seguros (Lei 15.040/2024) e outra sobre correção monetária (Lei 14.905/2024). O texto proposto por Pacheco, se fosse aprovado como está, criaria conflitos com ambas as normas já vigentes.

É dentro do Código Civil que estão os alicerces legais que orientam a vida das pessoas, desde o momento do nascimento até o fim da vida. Mudanças profundas no texto impactam diretamente na definição e proteção à família, o exercício da liberdade de expressão, as relações comerciais e patrimoniais. São temas sensíveis demais para serem analisados de forma leviana ou “rápida”, como queria o senador Pacheco, ou para ficarem a cargo de uma comissão de juristas – que, por mais bem-intencionados que fossem, jamais poderiam substituir o devido debate público. O Senado só perderia se iniciasse a tramitação do projeto de Pacheco sobre o Código Civil agora. Há temas mais urgentes esperando pela atenção plena dos congressistas. Para o bem do país, o suposto “legado” de Rodrigo Pacheco deve dormir nas gavetas do Senado pelo menos por mais algum tempo.

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