Por mais que o ministro Luís Roberto Barroso insista em negar, o problema do ativismo judicial é bastante real, como lembramos neste espaço alguns dias atrás. Na mesma ocasião, afirmamos também que a solução ideal deveria vir do próprio Supremo Tribunal Federal, cujos membros deveriam reconhecer que há anos vêm assumindo funções que não são do Judiciário, mas dos outros dois poderes, e partir para a autoconteção. Mas, se essa iniciativa não vem da cúpula do Judiciário brasileiro – que, pelo contrário, nega o problema enquanto o intensifica –, o que se pode fazer a respeito?
Tramita no Congresso Nacional um grupo de propostas de emenda à Constituição e projetos de lei, em diferentes estágios de análise, que consiste em um autêntico “pacote antiativismo judicial”. Por mais que o termo “anti-STF” já tenha se popularizado, seu uso é equivocado porque não se trata de atacar o Supremo, reduzi-lo à irrelevância, fazer dele um subpoder ou retirar-lhe as atribuições que a Carta Magna lhe dá. O objetivo é buscar meios de conter a distorção na separação de poderes causada pelo ativismo judicial, a intromissão de um Judiciário que redige e muda leis, que define políticas públicas, que decide quem pode ou não pode ser nomeado para certos cargos – enfim, trazer de volta à normalidade um cenário de relações entre poderes que hoje é anômalo.
Por mais que o termo “anti-STF” já tenha se popularizado, seu uso é equivocado porque o pacote não pretende atacar o Supremo, reduzi-lo à irrelevância, fazer dele um subpoder ou retirar-lhe as atribuições que a Constituição lhe dá
A oposição ao pacote antiativismo não tardou a vir. Os ministros do STF, como era de se esperar, têm feito muito uso do jus sperneandi, às vezes em termos bastante duros, como quando Gilmar Mendes chamou de “pigmeus morais” os senadores que haviam aprovado a PEC 8, um dos textos desse pacote antiativismo; mais recentemente, o decano do Supremo comparou o pacote à Constituição ditatorial da Era Vargas, promulgada em 1937. Formadores de opinião satisfeitos com a atuação recente do Supremo têm tentado desqualificar os projetos como mera vingança de parlamentares bolsonaristas contra uma corte que tem se empenhado em persegui-los, ignorando a realidade do ativismo judicial. Em muitos casos, tem sido dito que os projetos seriam “inconstitucionais”. Mas será isso verdade?
Não é nosso interesse, neste espaço, fazer uma avaliação positiva ou negativa a respeito dos projetos – o que, em alguns casos, já foi feito em outras ocasiões neste espaço. Interessa-nos, hoje, avaliar se o pacote antiativismo de fato viola a Constituição e os princípios que regem a relação entre os poderes, que são “independentes e harmônicos entre si”, nas palavras do artigo 2.º da Carta Magna, e estão todos sujeitos ao sistema de freios e contrapesos imprescindível em uma democracia para impedir o surgimento de “superpoderes”.
A primeira questão é bastante simples: o Congresso tem o direito de alterar as regras que regem o funcionamento do Poder Judiciário, inclusive do Supremo? Parece-nos óbvio que sim, já que o Legislativo, formado pelos representantes do povo, exerce o poder constituinte derivado – e inclusive já o fez no passado recente, quando em 2015 aumentou de 70 para 75 anos a idade de aposentadoria dos ministros do STF por meio da “PEC da Bengala”. Se o Congresso assim decidisse, poderia impor mandatos fixos a ministros, mudar o número de membros da corte, ou alterar a forma como eles são escolhidos. Tudo isso está dentro do escopo do Congresso.
Como também estão dentro das competências do Congresso as alterações previstas na PEC 8, a mais adiantada de todas as peças do pacote antiativismo, que limita o alcance de decisões monocráticas, e ainda assim em alguns casos bastante específicos, como uma forma de privilegiar o caráter colegiado do STF, reduzindo preponderâncias individuais que não estavam na mente do constituinte de 1988. Ainda que não seja possível classificar a PEC 8/2021 como uma espécie de acréscimo aos códigos processuais, ela não deixa de ser uma regra a respeito de como certos tipos de ações devem ser analisados pela corte, como tantas outras regras já definidas no passado pelo legislador. Não há violação a cláusulas pétreas, nem abolição ou diminuição de poderes do Judiciário – no máximo, de seus membros individualmente, mas nunca do STF como um todo.
O mesmo pode ser dito dos PLs 658/2022 e 4.754/2016, que incluiriam novas circunstâncias à lista de crimes de responsabilidade que poderiam levar a um impeachment de ministro do Supremo – respectivamente, “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais ou sobre as atividades dos outros poderes da República, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério” e “usurpar competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo”. Incluir ou retirar crimes de responsabilidade jamais deixou de ser prerrogativa dos representantes do povo, e as adições pretendidas pelos dois projetos não violam nem a separação entre poderes, nem garantias individuais dos ministros. Não se poderia nem mesmo falar em restrição à liberdade de expressão dos ministros (por mais irônico que isso soasse, caso a queixa viesse de quem tem se empenhado diuturnamente em acabar com a liberdade de expressão de 210 milhões de brasileiros) por meio do estabelecimento de regras que são impostas a todos os outros juízes do país e têm o objetivo de garantir a imparcialidade e a confiabilidade do Supremo.
A inconstitucionalidade alegada por parte dos que se opõem ao pacote antiativismo é ilusória. O que viola, sim, a Constituição é o avanço do Judiciário sobre outros poderes
Mais controversa é a PEC 28/2024, que permitia ao Congresso, por meio do voto de dois terços dos deputados e dos senadores, suspender decisão do STF que “exorbita do adequado exercício da função jurisdicional e inova o ordenamento jurídico como norma geral e abstrata”. À primeira vista, ela parece interferir drasticamente na independência e harmonia entre poderes – e, neste sentido, seria de fato inconstitucional – ao fazer o Congresso uma espécie de “órgão revisor” do Supremo, até porque seria o próprio Congresso a avaliar se determinada decisão constitui ou não ativismo judicial. No entanto, há algumas ressalvas, como a exigência de uma maioria do Congresso superior àquela necessária para mudar a Constituição, e a possibilidade de o STF derrubar a suspensão da decisão, com o voto de nove ministros, o que acaba preservando suas prerrogativas. Não se viola a independência entre poderes, não se submete um poder a outro, e cumpre-se uma das competências do Congresso, definida no artigo 49, XI da Constituição: “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros poderes”.
Como explicou à Gazeta do Povo o constitucionalista André Uliano, a PEC 28 seria a aplicação, no Brasil, de um sistema que já vem sendo usado em outras democracias, chamado weak-form judicial review ou “revisão judicial fraca”. “É um sistema completamente compatível com as democracias constitucionais e muito celebrado por vários acadêmicos. Não haveria nada de bizarro ou de demais em adotar esse sistema”, afirmou Uliano. Em outras palavras, seria um aperfeiçoamento do sistema de freios e contrapesos para impedir que o Judiciário se transformasse em um superpoder – o que, isso, sim, seria uma afronta à Constituição.
Repetimos: não se trata, aqui, de avaliar o conteúdo das PECs e dos projetos de lei, que podem e devem ser alvo de intenso debate, mas apenas de demonstrar que a inconstitucionalidade alegada por parte dos que se opõem ao pacote antiativismo é ilusória. O que viola a Carta Magna é exatamente aquilo que o pacote se propõe a conter: o avanço do Judiciário sobre os demais poderes, usurpando suas funções. A solução proposta pelos parlamentares para conter esta usurpação de papéis não viola garantias constitucionais, nem desequilibra a relação entre poderes – se é o melhor ou mais adequado, esta é outra discussão. Em outras palavras: o remédio pode até não estar na dosagem certa, ser o mais atualizado ou fazer o efeito desejado, mas veneno não é.
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