Que mundo emergirá da pandemia de Covid-19? Um mundo mais solidário, em que todos – ou pelo menos a maioria – terão consciência de que, estando no mesmo barco, as ações e escolhas de uma pessoa têm efeito sobre as demais? Ou um mundo mais individualista, onde o “cada um por si” consagra-se como regra e princípio de moral, justificando qualquer coisa? Essa questão está presente na nova encíclica do papa Francisco, Fratelli tutti (“todos irmãos”, expressão usada por São Francisco de Assis), que dá continuidade a uma tradição das chamadas “encíclicas sociais”, iniciadas com a Rerum novarum, de Leão XIII, em 1891. São documentos que tratam de questões que interessam a todos, não apenas aos católicos, e por isso podem e devem ser lidos por qualquer um que se preocupe com os rumos que a sociedade vem tomando.
A pandemia, no entanto, não é a responsável pelo diagnóstico que Francisco traça no início de sua encíclica; os sintomas do que o papa chama de “mundo fechado” já vinham de algum tempo. Algumas mazelas são antiquíssimas e jamais nos deixaram, como a pobreza; outras pareciam sepultadas, mas voltam a aparecer, como nacionalismos xenófobos; outras, ainda, são novas roupagens para velhos vícios, como a “agressividade despudorada” exibida nas mídias sociais e na internet em geral, “num desregramento tal que se existisse no contato pessoal acabaríamos todos por nos destruir entre nós”, resultando na completa perda de respeito pelo interlocutor. Francisco não chega a citar a “cultura do cancelamento” pelo nome, mas a descrição que faz do faroeste virtual se encaixa perfeitamente nesta forma de fascismo moderno.
Para Francisco, todas as crises – econômica, política, ecológica – têm sua origem em uma crise ainda mais profunda, uma crise moral
Uma crise política, uma crise econômica, uma crise humanitária – tudo isso é apontado por Francisco. Mas o que escapa a muitos de seus leitores, especialmente aqueles menos acostumados com o pensamento do pontífice, é o fato de todas essas crises terem sua origem em uma crise ainda mais profunda, uma crise moral. O papa já havia dedicado um capítulo inteiro da Laudato Si’, sua “encíclica ambiental”, a essa ideia, e a recupera na Fratelli tutti. O papa deixa claro que, se hoje desprezamos os nascituros e os idosos, exterminando-os pelo aborto e pela eutanásia; se ainda há miseráveis mesmo em meio a uma era de geração sem precedentes de riqueza; se perdemos completamente o respeito por quem pensa de forma diferente; se destruímos os recursos naturais do planeta, tudo isso se deve ao egoísmo que nos torna individualistas e insensíveis à noção de bem comum e ao sofrimento alheio – egoísmo que, em uma triste ironia, também pode ser praticado coletivamente, quando sociedades inteiras se fecham aos demais. Sem uma renovada prática das virtudes (não no sentido religioso da palavra, mas no sentido ético) e sem rejeitar explicitamente o relativismo moral que apaga as noções de uma verdade objetiva e torna inútil qualquer discussão sobre qual a coisa certa a se fazer, não será possível reverter este quadro.
É quando passa a expor sua visão de uma sociedade mais fraterna que Francisco confunde muitos de seus leitores, especialmente aqueles acostumados a rotular e ver com desconfiança qualquer proposta que fuja por milímetros de convicções político-ideológicas profundamente arraigadas. O “caminho do meio” de Francisco se apoia na tradição da Doutrina Social da Igreja e no pensamento de alguns dos maiores teólogos da história do catolicismo, como Tomás de Aquino. O papa pede maior cooperação internacional, mas rejeita explicitamente o globalismo; defende o livre mercado, mas recorda que ele, sozinho, não é capaz de resolver todos os problemas da sociedade; reconhece a propriedade privada como direito importante, mas diz que ele não é absoluto e que serve a um propósito social; recusa tanto o igualitarismo coletivista típico da esquerda quanto a noção de que o sucesso de alguém depende única e exclusivamente do esforço individual. Enxergar em trechos isolados e descontextualizados de Fratelli tutti indícios de “comunismo”, em uma ponta, ou “liberalismo”, na outra, é olhar uma árvore sem ver a floresta. Serve para marcar posições ideológicas, mas falseia o pensamento do papa.
O que Francisco pede, no fim, é a redescoberta da noção de dignidade humana e do bem comum, que permearão todas as dimensões da sociedade. Isso se reflete na ordem econômica: “Uma sociedade humana e fraterna é capaz de preocupar-se por garantir, de modo eficiente e estável, que todos sejam acompanhados no percurso da sua vida, não apenas para assegurar as suas necessidades básicas, mas para que possam dar o melhor de si mesmos, ainda que o seu rendimento não seja o melhor, mesmo que sejam lentos, embora a sua eficiência não seja relevante”, afirma o papa. Sem paternalismos ou estatismos, mas também sem aquela distorção da meritocracia que tende a abandonar à própria sorte os “perdedores”. Ainda que a economia não seja um jogo de soma zero, em que o rico só é rico por ter tomado tudo do pobre, Francisco recorda o dever moral de solidariedade dos que têm para com os que não têm.
Na política, a redescoberta da fraternidade leva a uma “grandeza” que “trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo” e conduz a “uma ordem social e política cuja alma seja a caridade social”. Há de se reconhecer a dignidade intrínseca do mais fraco – do pobre, do migrante –, mas também daquele que tem convicções ideológicas diversas. “Sobretudo o governante é chamado a renúncias que tornem possível o encontro, procurando a convergência pelo menos nalguns temas. Sabe escutar o ponto de vista do outro, facilitando um espaço a todos. Com renúncias e paciência, um governante pode ajudar a criar aquele poliedro bom onde todos encontram um lugar”, afirma o papa, acrescentando ser necessário que as pessoas se comprometam “a viver e ensinar o valor do respeito, o amor capaz de aceitar as várias diferenças, a prioridade da dignidade de todo ser humano sobre quaisquer ideias, sentimentos, atividades e até pecados que possa ter”, e que “um bom político dá o primeiro passo para que se ouçam as diferentes vozes”.
É um roteiro amplo, que cobre das relações interpessoais aos grandes temas da organização de uma sociedade. Mas de ingênuo ou utópico não tem nada. Seu ponto de partida é aplicar o antigo preceito, saído da boca do próprio Cristo, de “amar o próximo como a si mesmo” em sua inteireza: quando tantos isolam apenas o trecho sobre “si mesmo”, é preciso recordar que existe um próximo que deve ser amado da mesma forma. Feito isto, o resto, como dizem, será história. E o papa acredita piamente que a humanidade é capaz dessa virada. Acreditemos também nós, e esforcemo-nos para nos mostrar dignos de tal confiança.
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