Na impossibilidade de conseguir um consenso mínimo em torno de uma proposta que preservasse alguma aparência de responsabilidade fiscal e garantisse o cumprimento das promessas de Lula sobre o Bolsa Família, o relator do Orçamento de 2023, senador Marcelo Castro (MDB-PI), resolveu lançar a bomba quase que em seu formato original. “Ao invés de esperar chegar a um denominador comum, preferimos apresentar e durante a tramitação nós vamos negociar”, afirmou Castro a jornalistas na segunda-feira, quando protocolou a PEC da Transição.
E ajustes serão mais que necessários: serão obrigatórios se o Congresso tiver alguma preocupação com a saúde fiscal do país. A PEC da Transição, da forma como foi apresentada no Senado, onde iniciará sua tramitação, vai além do apelido de “fura-teto” que recebeu muito adequadamente: ela praticamente arromba o teto de gastos. A PEC retira todo o Bolsa Família – e não apenas o valor adicional necessário para que o valor suba de R$ 405 para R$ 600 – do teto entre 2023 e 2026. Além disso, essa despesa (que em 2023 deve ser de R$ 175 bilhões) também sai das contas do superávit primário, o que na prática transforma essa meta em ficção pura, ressuscitando a célebre “contabilidade criativa” que marcou a primeira passagem do petismo pelo Planalto. O texto ainda permite que parte do excesso de arrecadação de 2021 (outros R$ 23 bilhões) seja usada em 2023 sem contar nem para o teto de gastos nem para a meta de superávit primário. As contrapartidas são inexistentes. Não há previsão de medidas de controle da dívida pública ou cortes futuros de gastos.
Marcelo Castro colocou um bode na sala para que a sociedade se dê por satisfeita pelo mero fato de a PEC não passar na forma original, quando isso estará longe de ser a solução ideal
A não ser que o petismo já tenha conseguido um grau de apoio parlamentar que seria o prenúncio de um desastre para o país, o estrago deverá ser reduzido durante a tramitação da PEC fura-teto no Congresso. Isso, no entanto, não é suficiente. Com a versão protocolada da PEC pedindo um cheque de quase R$ 800 bilhões ao longo do próximo quadriênio, Lula ganhou uma margem enorme de manobra: ele poderia abrir mão de boa parte desse valor e ainda assim conseguir bem mais que os R$ 70 bilhões a R$ 80 bilhões necessários para bancar o aumento desejado para o Bolsa Família em 2023 – depois disso, nada impediria o governo de já prever o custo integral do benefício nos próximos orçamentos. O desfecho provável da PEC é que as negociações levem a alguma redução, que será vendida como vitória pela oposição ao petismo, já que “poderia ter sido pior”, mas que ainda assim causará um dano gigantesco às contas públicas. Em resumo, Castro colocou um bode na sala para que a sociedade se dê por satisfeita pelo mero fato de a PEC não passar na forma original, quando isso estará longe de ser a solução ideal.
Se a essa altura o Congresso já dá como certo que Lula haverá de receber alguma folga orçamentária para cumprir sua promessa sobre o Bolsa Família, a solução menos danosa está em propostas alternativas que senadores estão promovendo. A maioria delas limita o cheque ao valor necessário para ampliar o Bolsa Família em 2023, mantendo a regra do teto de gastos; um pouco mais preocupante é a proposta de José Serra (PSDB-SP), que concede crédito extraordinário de R$ 100 bilhões e revoga o teto de gastos, determinando que se aprove em seu lugar uma nova âncora fiscal baseada na dívida pública, mas sem propor nenhuma regra específica. Até o momento, nenhum senador encampou uma sugestão do Tesouro Nacional que flexibilizaria o teto de gastos, permitindo elevação de gastos acima da inflação, mas apenas se a dívida pública estivesse em trajetória de queda ou abaixo de um certo patamar.
“Quem apostar em irresponsabilidade fiscal vai errar”, afirmou o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin no último sábado, repetindo o mesmo mantra que vem entoando nas últimas semanas. A apresentação da PEC fura-teto e o fato de que Lula e a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, defendiam ainda mais permissividade com o dinheiro do contribuinte, retirando permanentemente o Bolsa Família do teto de gastos, mostram que o erro pode estar em apostar na responsabilidade fiscal. Lula nem assumiu e já quer centenas de bilhões de reais fora da regra de ajuste fiscal, bagunçando a contabilidade do superávit primário. É obrigação do Congresso reagir e preservar a pouca saúde fiscal que ainda nos resta.
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