Enquanto a equipe comandada pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, seguia trabalhando na PEC da Transição, a emenda fura-teto que o presidente eleito Lula quer ver aprovada ainda antes de sua posse para permitir o cumprimento da promessa de um Bolsa Família de R$ 600, prosseguiam as articulações políticas e as manifestações de quem apoiou o petista e agora critica seu populismo fiscal como se ele não fosse algo totalmente previsível. Por mais que vários atores políticos façam todo tipo de ressalva, há o risco de que o teto de gastos acabe definitivamente desmoralizado ou até mesmo abolido sem nada de concreto no lugar, abrindo de vez a porta para o retorno dos tempos de gastança sem fim que levaram o país à pior recessão da história, sob Dilma Rousseff.
A julgar pelas declarações de Ciro Nogueira, expoente do Centrão, senador licenciado e ministro de Jair Bolsonaro, Lula terá o que deseja ao menos em parte. A PEC “deve garantir somente os pontos comuns das duas candidaturas: R$ 600 de auxílio e aumento real do salário mínimo em 2023”, afirmou Nogueira, referindo-se a dois itens que também fizeram parte do programa da candidatura de Bolsonaro à reeleição e prometendo o apoio de seu partido, o PP, à PEC da Transição. Do ponto de vista prático, no entanto, é preciso lembrar que, se a base de apoio do atual governo já entrega de antemão essas dezenas de bilhões de reais fora do teto, sem que Lula não precise nem mesmo negociar por esse valor, o mais provável é que a fatura final acabe ainda maior, como demonstra o texto apresentado ao Congresso na noite desta quarta-feira, com quase R$ 200 bilhões fora do teto em 2023, além de manter o Bolsa Família longe da regra fiscal por tempo indeterminado.
Manobras que desmoralizam o teto de gastos enfraquecem também a posição do país diante do investidor, que passa a desconfiar da saúde fiscal brasileira
E é aqui que volta à cena Henrique Meirelles, que apoiou Lula ainda no primeiro turno apesar de seu partido (o União Brasil) ter lançado candidata própria ao Planalto, e que agora faz alertas corretos, talvez na esperança de que o país se esqueça do seu papel de fiador da campanha do petista junto a determinados setores do mercado e do eleitorado. “Tem que se ter uma âncora, tem que ter um teto. O limite tem que ser claro porque, caso contrário, o país pode e corre o risco sério de voltar a um clima de recessão”, disse o “pai” do teto de gastos, ex-presidente do Banco Central (nos dois mandatos de Lula, entre 2003 e 2010) e ex-ministro da Fazenda de Michel Temer, durante evento em Nova York na terça-feira, dia 15.
O teto de gastos, que limita o crescimento real da despesa pública ao permitir apenas a correção pela inflação, pode até não ter sido a melhor escolha para a primeira grande reforma macroeconômica do governo Temer – discute-se, por exemplo, se não teria sido melhor aprovar primeiro uma reforma da Previdência antes do teto –, mas seus méritos são inegáveis em um país que tem histórico de irresponsabilidade fiscal. O teto corta as asas de governantes gastadores e permite que eventuais receitas extraordinárias (por exemplo, decorrentes de privatizações) sejam usadas para abater a dívida pública, em vez de elevar despesas, às vezes de forma permanente. Faltou, no entanto, cumprir um outro objetivo: uma vez que o teto impõe um limite para a despesa total, políticos no Executivo e no Legislativo teriam de aprender a fazer boas escolhas, eliminando desperdícios, gastos imorais ou ineficientes para priorizar investimentos importantes e necessários – o bilionário fundo eleitoral e as emendas de relator estão aí para comprovar que o senso de prioridade ainda é escasso em Brasília.
O descumprimento do teto em situações de grave emergência se justifica. Durante a pandemia, o Brasil teria sofrido uma catástrofe econômica de proporções inimagináveis sem o auxílio emergencial, o crédito especial para micro e pequenas empresas e o dinheiro governamental para bancar parte do salário de trabalhadores com redução de jornada ou contrato suspenso; foram medidas que custaram centenas de bilhões de reais acima do teto. Situações muito diferentes, no entanto, têm sido as repetidas medidas que contornam o teto, criando “puxadinhos orçamentários” que nada mais são que uma burla ao mecanismo de responsabilidade fiscal. Foi assim, por exemplo, com a PEC dos Precatórios e a PEC dos Benefícios. Este é o tipo de manobra que desmoraliza não apenas o teto, mas também a posição do país diante do investidor, que passa a desconfiar da saúde fiscal brasileira, por exemplo exigindo juros maiores para emprestar ao Tesouro.
Isso não significa que o mecanismo seja imutável; enquanto a responsabilidade fiscal não for algo profundamente impregnado em nossos governantes, a ponto de limites legais se tornarem desnecessários, o teto pode e deve ser aperfeiçoado. Técnicos do Tesouro Nacional publicaram, no site do órgão, um relatório sugerindo a possibilidade de aumento real no gasto público desde que cumpridos critérios relativos à dívida pública – outro problema crônico brasileiro, já que o país tem relação dívida/PIB de país desenvolvido sem a confiabilidade das nações ricas, que lhes permite rolar dívida a juros baixos. Pela sugestão dos técnicos do Tesouro, o gasto público poderia subir até dois pontos porcentuais acima da inflação, mas apenas se a dívida estivesse abaixo de 45% do PIB (ela deve terminar o ano em 76,2% do PIB, segundo o próprio Tesouro) e em trajetória descendente; se estiver acima de 55% do PIB e em trajetória ascendente, não poderia ocorrer aumento nenhum. É uma ideia que merece ao menos discussão, desde que não se permita mais nenhum tipo de “puxadinho” ou exceção à regra.
O editorial foi atualizado com a informação sobre a apresentação da PEC ao Congresso, na noite de quarta-feira. A versão em áudio corresponde ao texto publicado originalmente, ainda antes da apresentação da PEC.
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