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Pelé, além dos gols e dos inúmeros títulos ganhos, ajudou a recuperar a autoestima do futebol brasileiro.
Pelé, além dos gols e dos inúmeros títulos ganhos, ajudou a recuperar a autoestima do futebol brasileiro.| Foto: Jonathan Campos/Arquivo/Gazeta do Povo

“Rei do Futebol”, “Atleta do Século”. Bastam esses dois epítetos para nos darmos conta das dimensões da perda que o Brasil e o mundo esportivo choram nesta quinta-feira, com a morte de Pelé, aos 82 anos. O menino que, em 1950, consolava um pai em prantos após o Maracanazo, prometendo dar-lhe um dia a alegria de ver o Brasil campeão do mundo, fez muito mais que isso: tornou-se uma lenda do esporte, uma referência a ponto de dar um novo significado ao número 10 que vestiu no Santos e na seleção brasileira. E, com isso, mostrou a todos até onde o Brasil poderia chegar e deu-nos uma lição que transcende o esporte.

Se a camisa canarinho tornou-se um símbolo de nossa nação, facilmente reconhecida aonde quer que se vá mundo afora, Pelé tem uma parte fundamental nisso. A conquista de 1958 foi essencial para a recuperação da autoestima do brasileiro, fragilizada pelo fracasso de 1950 a ponto de Nelson Rodrigues ter cunhado a expressão “complexo de vira-latas” na última crônica que escreveu antes da estreia brasileira na Suécia. A vitória naquela Copa do Mundo mostrou a nós mesmos e ao mundo todo que sim, éramos capazes de coisas grandiosas, éramos capazes de excelência – algo que Pelé perseguiu e atingiu em grau máximo dentro dos gramados, como bem demonstram vídeos que viralizam nas redes sociais, mostrando que ele já realizava todo tipo de jogada magistral que hoje admiramos quando feitas por outros grandes nomes do esporte. Por mais que o país caminhe para um jejum de 24 anos sem o campeonato mundial, continuamos a ser reconhecidos como celeiro de craques, onde as principais ligas do mundo vêm buscar talentos abundantes, como bem demonstra o número de brasileiros nos maiores times da Europa. O Brasil jamais deixou de ser “o país do futebol” e não deixará de sê-lo por um bom tempo.

Arte, esporte e ciência muitas vezes dependem de talentos ou características específicas. Treino e estudo intensos suprem muitas lacunas, mas a genialidade é reservada para poucos. Já a excelência na virtude, esta pode ser atingida por todos

A excelência tem uma série de dimensões, embora todas elas tenham em comum a admiração que despertam. Ela pode ser individual, mas também pode se tornar um fenômeno coletivo quando uma sociedade lhe dá valor e incentiva seus talentos. Foi o que ocorreu com o futebol brasileiro, e que poderíamos muito bem levar a outros campos, não só os esportivos: um ambiente propício para a arte ou para a ciência, por exemplo, permite que uma sociedade ou um país como um todo se beneficiem – tanto de forma material quanto imaterial – com as realizações de cada vez mais pessoas talentosas que são “empurradas” a buscar o seu melhor por um clima que favorece sua atividade e reconhece seu esforço. O Brasil não precisa, nem deve ser apenas o “país do futebol”: pode se tornar referência em muitas outras realizações humanas, mas para isso precisará valorizar sua importância. Quantos grandes cientistas brasileiros, por exemplo, não acabam deixando o país todos os anos em busca de outras nações onde tenham mais condições de desenvolver sua atividade?

Mas existe ainda um outro aspecto da excelência que deveria falar ainda mais alto em cada um de nós. Arte, esporte e ciência muitas vezes dependem de talentos ou características específicas. Treino e estudo intensos suprem muitas lacunas, mas a genialidade é reservada para poucos. Já a excelência na virtude, esta pode ser atingida por todos – e quem se empenha em ser excelente em um campo específico pode ou não dar atenção a isso: gênios da arte, da ciência e do esporte podem tanto ser boas pessoas quanto ter falhas graves de caráter, e não raro só depois da morte de tais gênios o público toma conhecimento do que eles faziam de bom ou mau – não devem ser poucos, por exemplo, os brasileiros que jamais souberam do trabalho humanitário de Pelé ou de seu apoio à educação e à saúde por meio da fundação que leva seu nome.

Fato é que a excelência moral é algo muito mais amplo: não se trata de ser o melhor atleta, o melhor cientista, o melhor artista, mas sim a melhor pessoa que se puder ser. E não nos deixemos enganar pela carga “religiosa” que às vezes se atribui ao conceito de virtude: a busca por essa perfeição não é exclusividade de nenhuma fé, pelo contrário: é algo que a filosofia antiga já exaltava. Trata-se de ser o mais generoso, o mais sincero, o mais honesto, o mais trabalhador, o mais dedicado à família, o mais fiel que se puder ser. Isso não exige nenhuma habilidade específica, apenas força de vontade. Para quem for capaz de exercer essas virtudes em alto grau, a recompensa será ainda maior que o aplauso dos fãs de um atleta ou artista: será a felicidade, como a definiam os antigos gregos. E ainda mais venturosa que uma sociedade que valoriza a arte ou a ciência será uma sociedade que valorize o exercício de qualidades como a honestidade, a generosidade e a laboriosidade.

Aquilo que Pelé fez em campo precisa servir de lição para todos nós, individualmente e em sociedade. A maioria de nós jamais terá uma fração do talento que ele teve com a bola nos pés, mas precisa ter o mesmo afinco que ele teve quando se tratar de desenvolver nossos talentos para outras atividades e, especialmente, para o exercício das virtudes que estão ao alcance de todos. E que o Brasil possa um dia ser reconhecido mundialmente não só pela excelência do seu futebol, mas por muitas outras excelências, especialmente aquelas que nos farão um país melhor, de gente admirada por suas qualidades humanas.

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