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Editorial

Plano de Trump é a rendição da Ucrânia e prêmio para a Rússia

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Ataque russo a área residencial em Kyiv, em 25 de novembro, deixou ao menos seis mortos: plano de Trump previa anistia a todos os envolvidos na guerra. (Foto: Maxym Marusenko/EFE/EPA)

Na semana passada, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, divulgou um plano de 28 pontos que, segundo ele, seria capaz de colocar fim ao conflito entre Rússia e Ucrânia, iniciado em fevereiro de 2022, quando o ditador russo, Vladimir Putin, ordenou a invasão do país vizinho. Nos últimos meses, Trump se reuniu tanto com Putin quanto com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky; se o resultado dessas conversas é o plano ora divulgado, podemos afirmar com toda a certeza que ele nem de longe distribui corretamente responsabilidades ou exige concessões; pelo contrário, nem o brasileiro Lula teria conseguido preparar algo tão absurdo.

O plano previa que a Rússia ficasse com a Crimeia (invadida em 2014) e com as regiões de Luhansk e Donetsk (incluindo as partes que as forças russas ainda não conseguiram tomar); nas regiões de Kherson e Zaporizhzhia, o que estivesse ocupado pela Rússia se tornaria território russo (item 21). Essa entrega de territórios seria reconhecida pelos Estados Unidos e a Ucrânia abriria mão permanentemente de reivindicá-los no futuro (item 22). As forças armadas ucranianas seriam limitadas em 600 mil membros – uma redução de quase um terço em comparação com o contingente atual (item 6). A Ucrânia não poderia entrar na Otan (item 7), e teria de mencionar tal proibição expressamente em sua Constituição; no máximo, poderia ingressar na União Europeia (item 11). Em troca disso tudo, receberia o quê? “Garantias confiáveis de segurança”, descritas de modo genérico (item 5); uma reconstrução parcialmente bancada pelos fundos russos congelados no Ocidente (itens 12 e 14); e uma expectativa de não ser novamente invadida – o item 3 dizia, literalmente, “espera-se que a Rússia não invada países vizinhos e que a Otan não se amplie” (destaque nosso).

Dar a Putin o que ele quer, mesmo que não seja tudo o que ele quer, e deixá-lo escapar impune pela invasão é abolir a ordem internacional construída a muito custo nas últimas décadas

Já a Rússia, além de conseguir o território invadido e o reconhecimento internacional do que já havia tomado no passado, seria reintegrada à economia global, com o fim gradual das sanções e a readmissão ao G8 (item 13). Haveria, ainda, uma anistia completa (item 26), o que impediria os russos de serem responsabilizados pelos inúmeros crimes de guerra cometidos. O plano previa que, em caso de novos ataques russos à Ucrânia, as sanções seriam restauradas, o reconhecimento da expansão territorial seria revogado e haveria uma “resposta militar decisiva e coordenada” – também sem detalhe algum sobre como isso ocorreria, se por exemplo com a participação ativa de tropas norte-americanas ou europeias na defesa da Ucrânia.

Muito resumidamente, o agressor injusto, que recusou todas as propostas anteriores de cessar-fogo, conseguiria tudo o que deseja: o território, a aniquilação do poder militar do vizinho, o retorno à comunidade internacional como se nada houvesse acontecido. Já o país agredido, que não tem feito mais do que defender sua soberania, teria de entregar aquilo que é seu, ver sua capacidade de defesa debilitada, e rezar para que não volte a ser atacado, já que garantias genéricas e garantia nenhuma são a mesmíssima coisa. Como afirmamos, nem mesmo aliados próximos de Putin, como Lula e o chinês Xi Jinping, teriam sido capazes de sugerir um plano tão favorável aos russos quanto Donald Trump. Os 28 pontos eram praticamente um prêmio à Rússia por ter invadido a Ucrânia.

Como tudo podia piorar, Trump ainda botou a faca no pescoço de Zelensky, praticamente exigindo que ele aceitasse o plano até o feriado de Ação de Graças, na próxima quinta-feira; do contrário, perderia o importante apoio norte-americano em áreas como inteligência e venda de armas. Na sexta-feira, o presidente ucraniano, fragilizado por um escândalo interno de corrupção, afirmou que se tratava de uma escolha entre perder a dignidade ou perder um aliado-chave. Em uma tentativa de conseguir salvar ambos, os ucranianos têm mergulhado em negociações com norte-americanos e europeus na Suíça, discutindo possíveis alterações ou mesmo a remoção de alguns itens da lista.

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Mesmo supondo que desde o início Trump tivesse imaginado seus 28 pontos como ponto de partida para a costura de um acordo diferente, e mesmo considerando que ele esteja realmente disposto a acabar com o conflito, começar com uma proposta totalmente favorável ao agressor (e que não deixará de sê-lo mesmo após eventuais mudanças) foi uma estratégia muito equivocada. Dar a Putin o que ele quer, mesmo que não seja tudo o que ele quer, e deixá-lo escapar impune pela invasão é abolir a ordem internacional construída a muito custo nas últimas décadas. Terminar o conflito nesses termos levaria instabilidade a todo o mundo, especialmente às regiões onde há outras nações expansionistas esperando pelo desfecho da guerra na Ucrânia para avaliar se vale a pena investir em suas próprias aventuras.

Difícil acreditar que um acordo como esse tenha sido proposto – inclusive sem a participação, ou até mesmo o conhecimento, de atores que estarão envolvidos em vários itens do acordo, como os países europeus. Sugerir o que, na prática, é a rendição ucraniana e o triunfo russo é demonstração não só de sordidez, mas de ignorância histórica: em 1938, no Acordo de Munique, Hitler também prometeu que os Sudetos eram sua última reivindicação territorial; as potências ocidentais entregaram o que ele queria, e o premiê britânico Neville Chamberlain saudou a “paz para o nosso tempo”. Menos de um ano depois, a Europa estava engolida pela guerra. Trump quer entrar para a história como o pacificador do século 21, mas deveria se lembrar de que nem Chamberlain, nem qualquer outro dos artífices do Acordo de Munique foi considerado digno de um Nobel da Paz.

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